1964 não foi apenas o ano em que eclodiria um dos mais sangrentos golpes de Estado de que se tem notícia. Na contramão das atrocidades levadas a efeito pelo regime militar, de que as execuções de estudantes, intelectuais e militantes de esquerda são a expressão mais abominável, o país felizmente ainda respirava no campo das artes: “Deus e o diabo na terra do sol”, do cineasta baiano Glauber Rocha, em meio ao agitado clima político, era exibido pela primeira vez nos cinemas brasileiros.
Sessenta anos desde o seu lançamento, uma das obras-primas do Cinema Novo (re)insere-se no grande debate sobre o Brasil cindido, como a renascer das cinzas para lançar luz sobre as relações de dominação do homem pelo homem, o fundamentalismo religioso como fator de doutrinação social e política e o surgimento de “mitos salvadores”.
Assentado em bases teóricas professadas em livro clássico sobre a cinematografia nacional, “Revisão crítica do cinema brasileiro”, 1963, do próprio Glauber Rocha, “Deus e o diabo na terra do sol” logo se tornaria uma espécie de marca do chamado Cinema Novo, quer pela denúncia dos problemas sociais e políticos do país, uma de suas características mais relevantes do ponto de vista “semântico”, quer pela estética fílmica propriamente dita: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, como apregoavam seus realizadores mais representativos, tornar-se-ia um dos slogans da nova estética.
A arte suscitando o debate em torno de nossas mais dolorosas contradições, era este o objetivo a ser perseguido no que Glauber Rocha definiria como a “estética da fome”. A teoria, todavia, há que ser vista em sua íntima dualidade: a fome e a miséria abordadas com os parcos recursos do cinema nacional. Numa palavra: uma cinematografia desprovida de qualquer sofisticação formal, sem prejuízo de sua beleza visual descarnada e cortante, que desse a ver as raízes das desigualdades e suas consequências no modo de vida de segmentos numerosos da sociedade.
Urge ressaltar, no entanto, que “Deus e o diabo na terra do sol”, em que pese a sua reconhecida originalidade em termos cinematográficos, fincara suas balizas estéticas no regionalismo literário dos anos 1930, a chamada segunda fase do modernismo brasileiro, dentro de cujos limites figuravam nomes de peso, a exemplo de Graciliano Ramos e José Lins do Rego, para ficar em dois de seus maiores representantes. O romance “Cangaceiros”, do escritor paraibano, era exaltado por Glauber Rocha como obra de aguçada compreensão da realidade nordestina, bem como o livro-monumento de Euclides da Cunha, “Os Sertões”, nomeadamente na terceira parte do livro, em que avulta a figura messiânica de Antonio Conselheiro — no filme, o Beato Sebastião, e sua profética inversão da ordem natural do mundo: “O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”.
Imemorial em sua intrincada tessitura dramática, “Deus e o diabo…” revela o doloroso processo de sociabilização do país, tendo como cenário o sertão nordestino, a terra calcinada e infértil por onde se espraia a quase indizível miséria e realidade de um povo. É desse ambiente de profunda desolação que Glauber Rocha extrai a matéria com que realiza esta verdadeira obra-prima, ombreando-se ao Lima Barreto do aclamado “O cangaceiro” (1953) dos tempos da Vera Cruz.
Não à toa, pois, é que seu nome ganharia dimensão internacional, e seu filme acolhido na Europa como exemplo de um novo cinema, isento da influência quase incontornável de um fazer cinematográfico sofisticado, a exemplo das produções hollywoodianas de que nem mesmo a Nouvelle Vague, de François Truffaut e Godard, fora capaz de libertar-se por completo. Isto, por si só, é suficiente para dar aos amantes da sétima arte e a uma certa crítica servil aos interesses do capitalismo, uma ideia do que representa “Deus e o diabo na terra do sol” para o Brasil, em termos culturais e artísticos.
Narrativa épica poucas vezes alcançada em qualidades estéticas, o agora sexagenário filme de Glauber Rocha pode ser revisto em plataformas do streaming (Globoplay, por exemplo), ofertando-se aos olhos do cinéfilo brasileiro como instrumento de reflexão sobre um país marcado por antagonismos aparentemente insuperáveis, e, coisa impensável para os tempos pós-modernos, ainda em grande parte doutrinado pelo ódio, pela violência, pelo fanatismo e inqualificável cegueira intelectual e política. Imperdível.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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