“No suor do teu rosto comerás
o teu pão” (Gênesis 3:19)
Era o fim de uma tarde de terça-feira. Como de costume, ao chegar ao meu apartamento, coloquei a mochila sobre a cama e fui tomar cerveja e comer espeto na pracinha. Estava exausto. Depois de uma tarde lecionando, como todo cidadão trabalhador, também eu mereço uma boa gelada e um tira-gosto.
Ao descer as escadas, percebi que o tempo estava fechado. O céu estava cinza, e o ar gelado prenunciava que uma chuva iminente. Decidi ir assim mesmo, pois sabia que o rapaz que vendia os espetos, como de costume, religiosamente, estaria lá. O seu negócio, como disse, era fixado em uma pracinha, a céu aberto mesmo.
‘‘Espero que a chuva não atrapalhe seu negócio, Dedé’’, disse eu enquanto sentia os tímidos primeiros pingos da chuva caírem sobre mim. ‘‘Que nada, professor, eu gosto é assim. A chuva não atrapalha em nada o meu trabalho’’, respondeu-me enquanto colocava alguns espetos para assar.
Eu nada mais disse sobre o tema. Peguei uma cerveja no cooler e fiquei divagando sobre o que o meu amigo disse. A perspectiva com a qual se encara uma situação faz toda a diferença. No caso do trabalhador Dedé, ele não via a chuva como um empecilho, como algo que afugentasse seus clientes e prejudicasse, com isso, o seu negócio. Negativo. Ele agiria, inverteria a situação aparentemente insolucionável.
A chuva intensificou-se. Embaixo do único orelhão velho do lugar, fiz meu abrigo. Foi quando pensei melhor: ‘‘Se o vendedor de espetos, que estava na labuta, não reclamava da chuva, porque eu, que estava em um momento de puro lazer, deveria acovardar-me ante a benção da chegada do inverno?’’ Também eu sai do abrigo improvisado e fui para o relento tomar banho de chuva, comer espeto, beber cerveja e dialogar com o meu amigo.
Em dado momento, o amigo empreendedor abastece um cooler com espetos e sobe a avenida principal oferecendo sua mercadoria nas portas das casas, bares e qualquer outro comércio que esteja aberto. A chuva não é obstáculo para quem é obstinado e encara as adversidades da vida com bom humor e alegria.
Enquanto ele subia e descia a rua, eu ficava no seu posto de trabalho, apenas bebendo e refletindo sobre a questão. Creio que deveríamos encarar a vida com a leveza do meu amigo. Nem sempre temos tal ânimo e dedicação ao que fazemos. Nesse dia chuvoso que relato ao amigo leitor, percebi que, às vezes, tudo é uma questão de olharmos por outro prisma, outra perspectiva. A vida pode se tornar leve ou um fardo, dependendo de como a enxergamos.
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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