A décima noite de novena

Parte I

01/03/2024

“…Quarta autem vigilia noctis venit ad eos…”

Evangellium Secundum Matheum, 14, 22

 

Aproximo-me, mas sem pressa, dos sessenta anos. Ainda ministro as minhas aulas, embora já próximo da aposentadoria. Confesso que não gosto da ideia, mas consolo-me lembrando que um dia todos haverão de ser encostados, ou do trabalho ou da vida.

Com grande desprazer sempre morei na capital. Jamais me acostumei com sua agitação e vida frenéticas. Tenho alma de interiorano. Com efeito, nasci em uma pequena e antiga cidade no alto sertão.

Desde criança as minhas maiores alegrias, a minha paz interior, sempre estiveram ligadas às minhas idas à cidade natal. Férias ao tempo da infância e da adolescência, eventuais retornos na idade adulta significavam e sempre hão de significar refrigérios salutares em meio à desértica vida na metrópole. Recordo com grande ternura os primeiros romances, as juvenis fantasias, as dolentes despedidas quando forçosamente tinha de retornar aos estudos e depois ao trabalho.

O meu caro recanto sempre foi uma adorável fuga. Mas toda essa magia, eu bem o sei, seria diversa se não fosse a confortadora e poética presença da religião. A velha igreja, as cerimônias, as missas com as tias idosas…. Quase todos já se foram…

Eu tenho sido um cumprir tedioso de atos permeados por lembranças… Mas felizmente ainda tenho o meu consolo de voltar ao interior pelo menos uma vez ao ano, durante as festas da padroeira do lugar, Nossa Senhora Santana.

Então encontro em mim o garoto, o jovem que fui, ao adentrar a velha igreja; ao participar, como sempre, dos seus sagrados ritos. E foi precisamente numa dessas ocasiões, no mês de julho deste ano, na noite do dia 25, que se deram os estranhos fatos que agora me ponho a narrar.

Para ser ainda mais exato, devo relembrar a noite do dia 24 de Julho. Eu assistira à novena de Senhora Santana, a penúltima noite de novena, e calmamente bebia uma cerveja em uma das muitas barracas, pequenos restaurantes que se instalam sempre nessa época para acolher eventuais visitantes e nativos do lugar, que como eu, o visitam frequentemente.

Estava sozinho, sempre a pensar e lembrar do passado…

– Foi bela hoje a novena, não acha?

Um senhor idoso como eu, talvez um pouco mais, falou-me educadamente. Respondi-lhe:

– Sim, muito organizada.

Havia cortesia e bondade na figura dele. Eu não o conhecia; talvez também morasse fora e tivesse vindo aplacar as saudades do interior. Começamos uma agradável conversa e ele contou-me que morava ali mesmo, há muito tempo. Eu identifiquei pelo sobrenome a família dele; uma antiga família do lugar. Assim como eu, era praticante católico; tinha até sido sacristão como eu também o fora. Nossa conversa naquela noite durou pouco; eu tinha de ir; precisava tomar os meus remédios e , ademais, eu gostava de deitar-me cedo e dormir.

– Vens amanhã? Não se pode perder; é a penúltima noite.

– Virei, sim. Mas não é a penúltima; é a última noite de novena. Eu corrigi o seu pequeno lapso.

– Penúltima. Disse-me ele, parecendo estar totalmente certo disso.

A última noite de novena, a do dia 25 de julho, costuma ser a mais movimentada e festejada. Vêm pessoas de todos os sítios, as praças ficam repletas. No dia seguinte, o dia da padroeira, não há novena. Somente missas e a tradicional procissão seguida da bênção solene que encerra toda a festa.

Quando criança, recordo bem, sempre aguardava com mais entusiasmo esta última noite. Mas já sentia alguma tristeza antecipando a saudade, pois geralmente viajava de volta para a capital na noite seguinte. Aquela última novena sempre foi como um ápice das minhas alegrias e devoções.

Mesmo agora, adulto e velho, experimentei uma certa ansiedade e intensa alegria ao participar devotamente dos ritos naquela noite. A princípio não encontrei o meu amigo. Somente depois, quando já me retirava, caminhando pela praça, o encontrei subitamente. Ele estava sereno como o tinha visto antes. Apressei-me em despedir-me dele, pois julgava não o ver mais naquela festa.

– Até o próximo ano, meu caro. Apertei-lhe cortesmente a mão.

– Como ? E não virás à última novena?

Aquilo, confesso, soou-me como pilhéria. Ou estaria a delirar o pobre velho?

– Brincas, não é? Esta foi a última novena, a última noite!

Ele sorriu de modo complacente, como se eu não soubesse algo muito óbvio; como se eu é que estivesse totalmente enganado. Fiquei meio confuso… então ele categoricamente falou:

– Esta noite foi a penúltima. Ainda há uma última novena. Queres ver?

 

 

A décima noite de novena

Parte II

 

“…Quarta autem vigilia noctis venit ad eos…”

Evangellium Secundum Matheum, 14, 22

 

Sempre, graças à minha santa mãe, tive tratos de gentileza para com toda a gente. Assim pus-me a explicar para aquele velho a origem da palavra novena. Do numeral ordinal latino novem, nove em português. Então só poderia haver nove noites. Não havia sentido algum em conceber a décima noite de um novenário.

Foram verba ventis, palavras ao vento. Ele manteve-se firme e indiferente à minha explicação. Senti como se eu fosse o bobo e ele o sábio. Então desisti e despedi-me. Mas ele disse algo que me perturbou profundamente. Sobretudo porque havia certeza em seu dizer. Não era como se quisesse me persuadir; era simplesmente alguém a anunciar uma clara e meridiana verdade.

– Se quiseres vir, aguardo-te aqui mesmo na praça. A última novena começa sempre às três da madrugada, a hora em que Jesus caminhou sobre as águas. Vem!

É desnecessário dizer que quando cheguei ao hotel não achei o sono. Aquelas palavras fixaram-se na minha mente repetindo-se como um refrão perturbador. Não havia escolha para mim. Contrariando todos os meus hábitos, sempre discretos e moderados, levantei-me, vesti-me e saí àquela hora tardia; já eram duas e meia da madrugada.

Fui à praça, é claro. Eu tinha consciência de estar a fazer algo ridículo, seguindo a instrução de um suposto néscio, ou alienado, que me dissera algo totalmente absurdo. Décima noite de novena! Que tolice!

A praça estava deserta. No interior, quanto menor for o lugar, os hábitos ainda são antigos. Dorme-se cedo. As barracas estavam cobertas. Os restos da festa por todo lado. A igreja fechada com suas enegrecidas e velhas portas. Nenhum bar ou restaurante ainda aberto; nem sequer um guarda-noturno vi naquele silêncio a caminhar…

– Que bom que vieste.

Era o velho da décima noite de novena. Surgiu por trás de uma barraca, perto da igreja. Assustou-me, é óbvio. Mas só tive surpresa; não medo ou sentimento de alguma ameaça. O homem inspirava segurança, tranquilidade e, principalmente, parecia muito convicto sobre o que falava e fazia.

– Vem, disse-me ele; já é hora. Vai começar.

Eu o segui. O que poderia fazer além disso? Segui-o em silêncio. Tinha de segui-lo. Eu precisava saber o que aconteceria naquela inusitada ocasião…

Quando chegamos à parte de trás da igreja, um local escuro que dava para velhos muros e terrenos baldios, eu vi – cousa espantosa e admirável – eu vi um cortejo enorme, iluminado por tochas e velas, saindo de uma névoa azulada como se brotassem da parede da igreja; uma longa procissão… à frente o andor de Nossa Senhora Santana, depois as cruzes, os saltérios, as longas velas do ofício, uma enorme multidão para celebrar a novena.

Pude perceber claramente os diferentes trajes de pessoas de todas as épocas que ali viveram. Eram homens, mulheres, crianças… jovens e idosos… A maioria, é claro, eu não reconheci. Mas depois vieram rostos familiares; Bispos e padres que já tinham morrido; amigos e conhecidos…

Um detalhe intrigante que nunca me esqueceu foi o silêncio da novena. Um silêncio de pedra, ao menos para os meus ouvidos. Eu sentia que eles falavam, realizavam os ritos sagrados. Mas eu não podia ouvir nada.

Em pouco tempo tomaram toda a praça, espalharam-se naquela grande visão, aureolados pelo crepitar das velas e pela névoa azulada…

Eu tinha a alma contrita em profunda devoção. Nunca me sentira assim. Acompanhei cada detalhe, cada palavra, mesmo sem ouvir nenhum som. Mas eu sabia desde criança todo o rito; sempre saberei, sempre o amarei…

O incenso dos veneráveis turíbulos subia ao céu noturno, misturado com a misteriosa névoa dos antigos defuntos… E eu rezava, rezava como uma criança que descobria as primeiras alegrias da fé.

Então foi-se aproximando o final da novena. Um antigo bispo, este talvez dos primeiros anos da paróquia, proferiu a solene bênção final. Todos então, sempre em sagrado silêncio, caminharam para o lugar de onde saíram, os fundos da igreja. A densa névoa sempre a cobri-los…

Acompanhei sem piscar todo o cortejo sumir-se pelas paredes; um a um; finalmente o andor de Senhora Santana e as últimas imagens dos santos…

Percebi por último, e isto deveras me assustou, meu amigo que me convidara para aquela novena sumir-se também entre as paredes da igreja. Antes de desaparecer acenou-me familiarmente.

Eu fiquei só, a olhar com profunda emoção e uma estranha tristeza a praça vazia e a antiga matriz de Senhora Santana…

 

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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