Naiara Leonardo Araújo (Doutoranda em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina/ bolsista CAPES. Pesquisas nas áreas de interesse: cinema e história; cinema e educação; história de Iguatu)
“Homem x Mulher: da dominação à liberdade” é o título da matéria publicada no jornal iguatuense De Fato, na sua edição de inauguração, em 1º de julho de 1984. Esta matéria, que conta com a assinatura conjunta de Gorete Soares e Yehudi Bezerra, parece ser a primeira publicação em veículos iguatuenses que visa refletir sobre as mulheres ao longo do tempo. Com uma pegada histórica que vai da pré-história aos dias atuais, a matéria aborda o assunto de maneira generalista, reservando apenas os últimos parágrafos e o presente (ou seja, 1984) para refletir sobre a condição da mulher iguatuense que agora pode contar com a Associação das Mulheres Iguatuenses (AMI).
Dos vestígios documentais sobre a história da cidade de Iguatu encontrados até o momento, e que aqui venho destacando trechos para a reflexão do leitor, a imensa maioria foram pensados e escritos por homens, endereçados para um público majoritariamente masculino com algum capital econômico/intelectual, tratando de assuntos que eram dados como de difícil compreensão para a mulher (quem ouviu o comentário de que “política não é assunto para a mulher” já se perguntou como essa afirmativa de senso comum foi se construindo historicamente?). Vale lembrar ainda que os altos índices de analfabetismo existentes até meados do século XX, relegaram ao esquecimento parcelas da população que não tinham (ou não podiam ter) acesso ao ensino, e que não eram vistos como relevantes nas publicações que se produziam.
Assim, a presença das mulheres nesse corpus documental se manifesta: (1) nos informes sobre e para os professores (publicados nos jornais até fins do século XIX e início de XX), em que predomina o nome de professoras; (2) quando raptadas para casar (conforme abordei na matéria anterior) ou vítimas de violência doméstica; (3) como escritoras de coluna social ou compondo a mesma; e, (4) talvez motivados pelo novo cenário político que se anuncia em 1984, na forma de reflexão histórica com intenção de transformar o lugar destinado às mulheres.
A presente matéria, que destaco um trecho abaixo, enfatiza momentos importantes para compreender como as mulheres ficaram relegadas ao âmbito privado, a partir de uma dominação que lhes restringiu o acesso ao conhecimento. E observa como a educação dos meninos reproduzem aspectos de um machismo histórico, difícil de romper. Aqui, a visão de que os tempos estão mudando e que o papel da mulher na sociedade está em transformação dá indícios de que os debates promovidos pela segunda onda feminista alcançaram parcela das mulheres iguatuenses e, por meio da AMI, promoveram debates que puderam ecoar pela imprensa escrita.
“Homem x Mulher: da dominação à liberdade
[…]
A imposição da força física adquirida em trabalhos mais pesados tornou o homem o chefe da família. Não deixa de haver uma certa lógica nisso. O homem teria sido dominado pela mulher, que o “obrigava” a executar a parte mais pesada do trabalho – a defesa, a caça, etc. A mulher não tinha condições de saber que pelo trabalho de defesa e provisão da família o homem desenvolveria, naturalmente, uma inteligência sociológica e tecnológica. Teria sido dessa maneira que, de modo “natural” o homem galgou a posição de mando encontrada na família desde a “barbárie”. […]
Novamente o trabalho desenvolve, na cabeça das pessoas, novas concepções de vida social, estabelecendo avanços na ordem cultural. Quando o homem apropriou-se do trabalho produtivo (idade antiga à idade média), a “primeira “atitude que tomou foi de impedir à mulher o desenvolvimento de suas condições intelectuais, impedindo-lhe, mesmo que por razões outras, o acesso ao trabalho produtivo. A mulher ficou confinada ao lar, ao cuidado da ninhada, à função de parideira-reprodutora-da-espécie. À mulher cabia a função de prover a sociedade de novos machos, a fim de torná-la forte. […] Essa função de reprodutora-provedora-de-machos que a mulher assumiu esteve sempre ligada à função de educadora dos filhos e cozinheira. Para compensá-la desta faina brutalizante, o homem elevou-a à condição de “rainha do lar”. Uma rainha de um limitadíssimo reino, é verdade. Um reinado igualmente idiotizador, desde que não dava à mulher, nenhuma condição de elevar-se à simples humanidade. […] As múltiplas e “divinas” funções de mãe, esposa (com bênção da Igreja e tudo mais) e senhora do lar não dá à mulher senão a condição de escrava. Confinada ao lar, a mulher fica limitada a uma posição passiva, sem nenhuma participação direta na organização política ou econômica da sociedade humana. A mulher vai perdendo os seus direitos à humanidade.
A educação das crianças já se diferencia com o objetivo de dar à mulher a condição de submissão. O menino é educado para dominar. […] As raízes do “machismo” começam a cravar-se na consciência infantil. Essas raízes, além da configuração educativa, pedagógica, tem o fundamento histórico-cultural. Por essa razão é tão difícil mudar a cabeça de um adulto. É necessário todo o esforço social e político em torno de tal mudança.
A conquista de espaço no trabalho e política é o principal caminho que a mulher deve percorrer em busca de sua “libertação”. As sociedades industriais lhe deram todos os elementos de sua “corrida” em busca de si mesma. Com uma produção a nível industrial, o homem se viu obrigado a usar a força de trabalho feminina, abrindo, sociológicamente o espaço político às mulheres. A participação nas atividades sindicais e de classe vão prestando às mulheres o serviço revolucionário da transformação de sua inteligência social. O “salto histórico” que as mulheres estão dando agora se deve justamente à participação direta nos processos produtivos e nas atividades políticas da sociedade.
Certas cidades interioranas ainda guardam – a sete chaves – os preconceitos contra a mulher. Mesmo trabalhando em casa e numa atividade produtiva, a mulher continua submissa. É por esta razão que surgem os movimentos femininos, as entidades oficiais de proteção dos interesses sociais da mulher.
Em Iguatu existe a AMI – Associação das Mulheres Iguatuenses. Uma entidade voltada para os interesses da mulher, quer dizer, para os interesses de toda a sociedade, desde que homens e mulheres precisam unir forças, no sentido de criarem um corpo social mais saudável e mais livre dessa velharia preconceituosa. A AMI tem o objetivo específico de lutar pelos direitos sociais e políticos da mulher, além de um trabalho pedagógico-participativo por uma sociedade livre e igualitária. Essa função pedagógica é levada ao trabalho de conscientização da mulher a respeito de sua condição e de seus direitos.
A AMI vem promovendo, nos bairros iguatuenses, reuniões com o propósito de passar para as camadas populares os seus objetivos – elevar o nível de consciência da mulher para que ela possa participar das atividades políticas da sociedade, como para que elas se tornem companheiras de entidade, a fim de torná-la forte. A AMI iniciou uma pesquisa para detectar os problemas mais sérios da mulher iguatuense. Oportunamente esta pesquisa, será transformada num documento e publicada.
Gorete Soares e Yehudi Bezerra”
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