A visita – parte I

15/03/2024

Nenhuma viva alma transitava pela minha rua naquela tarde irritantemente quente. O tédio se fazia na sua proporção mais intensa. Eu já tinha lido durante boa parte da manhã; precisava ocupar a mente com outra coisa. Algo para saciar a sede, pra ser mais preciso.

Beber, eis a solução! Sei que muitos são adeptos da famigerada ‘‘vida saudável’’. E é um direito que lhes cabe cuidar da própria saúde, bem como é meu direito descuidar da minha. Eu jamais frequentaria uma academia. Praticar uma arte marcial, então? Deus me livre. Natação? Nem nadar eu sei. Tais atividades em nada combinam com a minha personalidade e filosofia de vida.

Sou amante do álcool e do cigarro. Fazer esforço (e, para piorar, pagar para isso), passar horas em um ambiente barulhento e cheio de gente?… Não, eu não suportaria. Prefiro morrer mais cedo mesmo. A vida boêmia é demasiadamente curta, eu sei, mas é prazerosa e intensa; vale a pena. Bem melhor do que viver cem anos de uma vida inalteravelmente regrada, repetitiva e, presumo, sem sal, sem aquele toque de energia que só a boêmia pode oferecer.

Bem, deixemos as academias aos seus adeptos. Dizia eu que era uma tarde tediosa e quente. O silêncio também se fazia. Os vizinhos certamente saíram. Nenhum vento, por mais modesto que fosse, corria pelo corredor. Definitivamente, eu precisava beber. Beber para fugir daquela monotonia maçante.

Desci as escadas, passei pelo latão de lixo, dobrei a esquina e cheguei à mercearia. O opulento dono do recinto despachou-me prontamente. A cerveja estava, como costumam dizer, ‘’estupidamente gelada’’! Passei o cartão – solução e problema do homem contemporâneo – e fiz o trajeto de volta. No caminho, já próximo do meu apartamento, meu gato parecia me esperar. Quando entrei, percebi uma segunda moto estacionada na garagem. ‘‘Tenho visitas?’’, pensei enquanto subia as escadas.

Era uma mulher. Uma mulher de aproximadamente trinta e cinco anos, talvez. Confesso que não a reconheci quando ela chamou-me pelo nome. Olhei confuso e não soube, nesse inusitado momento, o que dizer. Ela percebera a minha confusão.

Não vai me convidar para entrar?

—Sim, claro. — respondi sem graça.

—Também vou querer um pouco da sua cerveja. Vejo que tem muitas aí nessa sacola. Ah! E coloque uma boa música! — ordenou, praticamente.

Eu estava incomodado por não me lembrar da mulher que adentrava ao meu reduto naquele instante. E ela, não sei se intencionalmente, não se apresentou de imediato.

— A tarde tá quente, né? Fizestes uma boa em comprar tantas cervejas! Assim saciamos nossas sedes! — disse ela.

— Como anda a sua turma? Sé que tens alguma. — quis saber.

Não respondi a nenhuma pergunta. Apenas servi a cerveja e sorri amarelo. Eu precisava entender o que estava acontecendo. E que clima de mistério era aquele? Qual a razão para tanto suspense? Seria uma desagradável pegadinha orquestrada por algum amigo, com a finalidade de me deixar confuso e sem jeito? Se for, obteve êxito, seja lá qual deles tenha sido o autor desta desconfortável situação.

— Bora, rapaz, conte-me as novidades! — continuou ela.

— Afinal de contas, quem é você? Deixemos de brincadeiras, beleza? — sentenciei.

Eu decido o que dizer e quando dizer, meu bem. Não é o momento. Agora, por favor, seja bonzinho e acenda um cigarro para cada um de nós. — disse isso sorrindo e desconcertando-me.

Enquanto fumávamos, eu a observava e tentava lembrar… de onde eu conhecia aquela mulher, afinal? Seria alguma amiga de infância? Uma namoradinha há muito esquecida? Talvez uma, igualmente esquecida, vizinha? Quanto mais eu a olhava, menos eu tinha ideia de quem seria aquela criatura. E ela parecia gostar do que estava proporcionando. Ela fumava com certa intensidade e sensualidade. Repousava o cigarro no cinzeiro com uma elegância ímpar. Não posso negar que era um ser charmoso e atraente.

— Sabe, quando fui embora, eu sabia que voltaria algum dia. Eu deixei muita coisa aqui. Não apenas as minhas raízes familiares, mas também verdadeiros amigos e você, que não é amigo. Não se preocupe, bebê, também não és o meu amor! O meu amor morreu no ano passado, vítima de um acidente na fábrica onde trabalhava. — revelou-me.

Eu não era seu amigo, tampouco o seu amor… estava ficando cada vez mais confuso. E o que eu era, então? O que eu sou, aliás? Sei lá! O que fazia ela ali no meu apartamento? O que diabos estava acontecendo? Olho fixamente para ela. Seu decote, por um instante, desviou meus olhos dos dela. Sua roupa era justa ao corpo, denunciando, assim, suas curvas apetecíveis. Neste instante, imaginei a gente em um momento de intimidade… Eu virei o copo de uma vez. Ela emulou: fez o mesmo, só  que sorrindo. A mulher percebera que estava sendo desejada naquele instante.

— Você se lembra quando, na década de 1990, fizemos aquela professora chorar de raiva? – indagou-me.

— Peraí, não pode ser você! Estás simplesmente irreconhecível! Como pode uma pessoa mudar tanto? — assustei-me com a revelação.

 

A visita – parte II

Era Naíla, que na época de escola namorava um amigo meu. O namoro não durou muito. Ambos eram populares no colégio, mas brigavam constantemente; brigas tolas de jovens imaturos: ciúmes, egos inflamados, essas bobagens próprias da tenra idade. Mas o que ela queria comigo? Não éramos tão íntimos para que ela viesse, depois de tanto tempo, visitar-me!

— Eu mudei, sim, meu caro ex-colega, de fato. Mas há coisas que não mudam ou morrem de um todo, sabe? Eu lhe disse que você não é o meu amor, não disse? Pois é, isso é verdade, não és. Mas já foi um dia, ainda que em segredo. E estou aqui em nome desse sentimento que carreguei em segredo durante décadas. — segredou-me ela sem aparentar nervosismo.

— Quando meu marido morreu, decidi que era hora de voltar pra minha terra. Já não queria mais ficar longe de tudo e de todos. Quando uma mulher perde um grande amor, precisa de ‘‘muletas consoladoras’’; e elas só podem ser encontradas nos braços da família e de algum homem que julgamos especial, meu querido. Não tive filhos, por isso não os incluo nas tais ‘‘muletas’’.

— Não entendo, Naíla… Por que não contou-me de sua, digamos, ‘‘admiração’’ por mim? Percebe que poderíamos termos tidos, juntos, uma vida bem diferente da que escolhemos ou tivemos de viver? E tudo pelo fato de você ter guardado tal sentimento só para você? Seu egoísmo, ou sei lá o quê, prejudicou um futuro, pois ele nunca veio a existir! E se tivéssemos dado certo? E se fossemos, hoje, uma família? – despejei tudo, com um ar um tanto furioso.

— Eu não poderia lhe conter, meu querido. Eu queria, mas tinha vergonha de ti. Eu era popular, você não. Eu era querida, você não. Eu namorava uma cara popular da escola, já você, não tinha ninguém. As meninas riam das suas esquisitices: sempre sozinho, desenhando ou escrevendo. Não sabia jogar futebol, faltava sempre às aulas de educação física. Compreende que, se eu deixasse meu namorado e ficasse contigo, seria vista como uma versão feminina do ‘‘esquisito do colégio’’? – falou isso sem me fitar o olhar, como que por vergonha de jogar tudo isso na minha cara.

Neste momento, abri outra cerveja. Ao servi-la, notei que sua mão estava um pouco trêmula. Para acalmá-la, eu disse que já não mais importava toda aquela revelação surpresa de um passado que assassinou um futuro. Até sorri quando ela, ao mexer o cabelo – daquela forma que só as mulheres sabem fazer – exalou das suas madeixas um aroma agradável. Lembrou-me o perfume de alguma flor, rosa…

— Coloca Emílio Santiago pra tocar, amor! A música? Saygon. Aliás, posso te chamar de ‘‘amor’’? – inquiriu com um olhar sutilmente atrevido

— Chame-me pelo meu nome; é melhor. Quanto à música, sim, posso colocá-la, evidentemente. Inclusive, devo dizer que foi uma excelente e pertinente escolha, moça! – falei isso de forma quase sem pensar no que dizia.

Ficamos em silêncio enquanto ouvíamos a canção. Fumávamos, bebíamos e trocávamos olhares. Por muito tempo, nenhuma palavra fora proferida. Uma estranha paz se fez. O silêncio ajudou a acalmar os pensamentos conturbados pela revelação da minha insólita visita. Naíla olhava para mim como se quisesse dizer algo, mas continuou no prazeroso silêncio.

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

 

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