Pastora das Nuvens

06/04/2024

Se o ano de 2024, como escrevi neste espaço, deve ser exaustivamente lembrado como o ano dos sessenta anos de nascimento do mais abominável acontecimento político verificado neste país, refiro-me ao golpe de Estado de 1964, por outro lado é marco da morte de uma das mais belas brasileiras, Cecília Meireles, ocorrida também há exatos sessenta anos.

Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu a 7 de novembro de 1901, no Rio de Janeiro. Estreou na literatura em 1919, com o livro Espectros, a tal ponto distante de seu futuro estilo, que a própria Cecília eliminou de sua bibliografia, descartando-o como obra de somenos importância. A ele se seguiriam Nunca mais e Poema dos poemas (1923), finalmente libertos das influências parnasianas visíveis no livro de estreia.

Nos anos seguintes, viriam Criança, meu amor (1924) e Baladas para El Rei (1925), agora presos não ao parnasianismo de primeira hora, mas assumidamente inspirados na estética simbolista.

Em 19 de novembro de 1935, casada com o artista plástico Fernando Correia Dias, Cecília viveria momento trágico em sua vida pessoal: Maria Fernanda (conhecida atriz falecida há dois anos), filha caçula, chamaria a mãe para mostrar-lhe o corpo do pai, enforcado na sala de casa. Começaria uma fase extremamente difícil na vida da escritora, a quem caberia, a partir de então, arcar com a criação das filhas do casal.

A primeira grande obra de Cecília Meireles, Viagem, viria a público quatro anos após a morte do marido, inaugurando uma trajetória artística que ocuparia a mais alta posição entre as poetas brasileiras: “Eu canto porque o instante existe/e a minha vida está completa./Não sou alegre nem sou triste:/Sou poeta”, canta ela em “Motivo”, um de seus poemas mais celebrados.

Além deste, dois outros poemas do livro entrariam para o rol das grandes realizações do cancioneiro popular: “Em que espelho ficou perdida/a minha face?”, indaga, em “Retrato”, e, no desconcertante “Guitarra”, faz uma das mais belas afirmações poéticas de que se tem notícia entre os escritores brasileiros: “A maior pena que eu tenho,/punhal de prata,/não é de me ver morrendo,/mas de saber quem me mata”.

Como toda mulher, num país historicamente misógino, nem mesmo a genialidade artística de Cecília Meireles seria bastante para dar à escritora o reconhecimento merecido. Um dos papas do Modernismo, em 1952, Oswald de Andrade não mediria palavras para desmerecê-la: “A senhora Cecília Meireles é uma espécie de Morro de Santo Antônio, que atravanca o livre tráfego da poesia”. A literatura tem também seus momentos rasteiros.

Nada que impedisse Cecília, contudo, de continuar sua carreira irretocável, que atingiria seu ponto culminante, por sinal, dois anos depois do comentário ferino de Oswald de Andrade: Romanceiro da Inconfidência seria a consagração definitiva. Muitos outros livros viriam.

Deixando uma obra inquestionável por suas qualidades formais e de conteúdo, como cronista, ensaísta e poeta, sem falar na sua luta em defesa de uma educação para todos, inspirada nas contribuições de Fernando Azevedo, Cecília Benevides de Carvalho Meireles morreria de câncer no entardecer de 9 de novembro de 1964, comovendo, de ponta a ponta, o Brasil, àquela altura submetido aos horrores do golpe militar de 31 de março do mesmo ano.

Poeta pelos caminhos da terra, no dizer sensível de Antônio Carlos Secchin, e pelas asas do ar: não por acaso considerava-se “pastora das nuvens”. E o foi, na grandeza de sua arte – e beleza incomensurável da mulher.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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