1955: Crônica literária publicada no jornal iguatuense Tribuna de Iguatu

15/06/2024

Naiara Leonardo Araújo

A imprensa brasileira do início do século XX frequentemente recorria a publicações de matérias literárias, a exemplo das novelas de folhetins publicadas na forma de capítulos. Da mesma forma, parece que a imprensa local, especial no seu empreendimento da década de 1955, por meio do jornal Tribuna de Iguatu, também usou desse espaço de escrita para publicar e divulgar textos de cunho literários de escritores locais.

Assim, levando em consideração que a escrita literária também pode não só informar para além da narrativa ficcional, mas ainda sobre o próprio tempo e compreensão de mundo de seu autor e sociedade, é que destaco a crônica literária escrita por Diosito M. Cavalcante, para a edição do jornal de 1º de maio de 1955 (p.11), com a finalidade de poder refletir sobre como esse eu-lírico masculino (e autor) descreve e adjetivam essa mulher não nomeada.

“Princeza

Diosito M. Cavalcante

Ninguém a conhece, mas todos a vêem passar e passear pelas ruas da cidade. Anda como se não pisasse no solo ou como se fosse a imagem rediviva da virtude esmagando com o seu piso soberbo a cabeça da serpente tentadora. Traz nos olhos a severidade e levantada a cabeça como se trouxesse na fronte um diadema de estrelas. As feições são bem feitas e corretas, parece uma daquelas personagens do Olimpo esculpida por om Fìdias ou Praxiteles. Sempre que a vejo passar da-me ganas de gritar com toda fôrça dos meus pulmões, os versos do trovador:

Mulher: teus pés no chão

Parecem rosas pisadas

O fascínio dos teus lábios,

Lembra a cor do sol lá no poente.

Mas infelizmente a beleza não é a perfeição; contem tanto o impuro como o imaculado. Dizem até que ela é inteligente, mas soberba. Em casa aqueles que tem pensamentos em bases populares são para elas <párias> ou <cules>. Seu porte totalitário não admite a compaixão nem a delicadeza de solicitar. Se o seu braço se levanta é para ordenar, se sua voz se desprende é para mandar. Na beleza é uma Rozaura Montalbani, na inteligência é uma nova encarnação de Safro – a lirica do amor – mas no gênio… é uma Lucrécia, um ditador da linguagem dos kans, uma cópia feminina do Ivan, o terrível.

Por gosto seu, se lhe permitissem, neste Brasil, onde tudo é permitido, em plena anuidade, em que se celebra o <Ano Santo> ela implantaria os costumes da dinastia do Rei Khrufu do Egito. E seria gozado… Nós seriamos uma terra de homens governados e de mulheres mandonas. Uma terra em que as mulheres <vestiram calças>, exigindo absoluta fidelidade de seus maridos e tomando a iniciativa em todos os galanteios. Receberia um dote de seus maridos quando casarem. A transmissão de todos os bens de raiz se fariam para linha materna.

Quanto aos homens, pintariam os lábios, ponham carmim no rosto, óleo nas pálpebras e coloriam as unhas. Se encalveciam, esfregaram a cabeça com cinzas e óleos, pedindo ao Ozires que os tornasse pilosos.

Seria a ocupação de cada rapaz de Iguatu, por exemplo, descobrir uma esposa, antes de vir a ser um <solteirão>. É gozado… Quanto a ela, a ela, ah, seria uma produção fidelíssima da senhora Mant Sebo Seeiso a Chefe suprema da grande Bassutolândia. Teria poderes para tudo: casar, batizar… separar, etc. Como o genial Solon, o grego, baixaria um decreto ordenando que cada mulher tivesse pelo menos três vestidos e… três maridos, Gozado…

Se o homem cometesse o sacrilégio de um adultério, seria morto imediatamente.

Como a rainha Bess da Inglaterra, não casaria mas teria amigos. Como esta os defenderia com toda força de sua autoridade e com a mesma veemência que Perícles defendeu Aspésia. Suprimiria o culto da religião e ela seria a religião e os santos. Todos diante de sí se curvariam e beijariam o chão e como no livro sagrado dos Muçulmanos prometeria às mulheres piedosas um harém no paraíso de 72 Apolos (homens extraordinariamente belos). Para completar, criaria como obra revolucionária (o Clube das mulheres), como o da famosa rainha Eleonora, mãe de Ricardo, Coração de Leão. O Clube teria muitas regras mas a principal seria a de expulsão da mulher que fosse surpreendida namorando seu próprio marido. É gozado!

E ela reinaria. E ela mandaria e se orgulharia ainda mais com as criações de sua inteligência prodigiosa. Mandaria que os homens, escravos eternos de seu jugo trouxesse do Céu uma coroa de estrêlas em que a estrêla matutina brilharia com destaque em sua soberba cabeça. E se os homens não trouxessem…aí deles. Todo dia ela passa, todos a vêem e ninguém á conhece, no entanto associada aquela extraordinária beleza vai uma soberba inteligência. Demonstrado está.”

Uma das primeiras considerações que salta aos olhos diz respeito à inversão de algumas estruturas costumeiramente presentes no universo da conduta masculina, mas que ao serem postos na mulher parecem torná-la menos bela por que soberba. “Dizem até que ela é inteligente” e a “beleza não é perfeição”, maculados que estão por sua soberba. Quem é essa mulher desconhecida que o eu-lírico vê passar com um misto de admiração, comedimento e receio? Totalitária e mandona é equiparada ao czar russo Ivan, o terrível, um homem tido como absurdamente excêntrico.

O pouco que se vê de Brasil e que se apresenta num tom levemente crítico está presente no trecho “neste Brasil, onde tudo é permitido”, que não nos deixa indícios possíveis de conectar a um ou outro aspecto da sociedade de então. Da mesma forma, a menção à cidade de Iguatu – “Seria a ocupação de cada rapaz de Iguatu, por exemplo, descobrir uma esposa, antes de vir a ser um <solteirão>”.

Mas, ao analisar o presente documento, a curiosidade maior e perguntas que se projetam consistem em saber sob qual contexto o autor escreveu esse texto e, especialmente, como a sociedade iguatuense, leitora do referido jornal, recebeu esta leitura.

MAIS Notícias
O Mestre Sala dos Mares
O Mestre Sala dos Mares

  Até 1910, mesmo depois da abolição da escravidão no Brasil, em 1888, a Marinha brasileira ainda castigava seus marinheiros negros fisicamente, com chibatadas. Em determinada ocasião, os marinheiros brasileiros foram à Inglaterra para aprender a tripular novos...

Mudanças no financiamento de imóveis dificultam aquisição
Mudanças no financiamento de imóveis dificultam aquisição

A partir de 1º de novembro, os mutuários que financiarem imóveis pela Caixa Econômica Federal terão de pagar entrada maior e financiar um percentual mais baixo do imóvel. O banco aumentou as restrições para a concessão de crédito para imóveis pelo Sistema Brasileiro...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *