Em meio a tantas interpretações aceitáveis, leitor muitas vezes opta por fazer uma que nada tem a ver com a intenção do autor. Quando escrevemos, temos pela frente o que Umberto Eco define como “leitor ideal” ou “leitor-modelo”, uma construção teórica que se nos apresenta, no ato da escrita, como capaz de decodificar à perfeição o texto produzido, de acordo com as nossas intenções enquanto escrevemos.
É verdade que todo texto, e não me restrinjo ao texto verbal, mas a toda e qualquer linguagem organizada com a intenção de expressar sentidos, um quadro, um filme, uma escultura ou, mesmo, uma performance, por exemplo, é “obra aberta”, detentora de quase tantos significados quantos forem os receptores dessas mensagens. O estudioso italiano, por sinal, produziu com este título, “Obra Aberta”, um de seus mais importantes livros, o que marcou toda uma geração a que pertenci como professor do que se poderia convencionar como comunicação e linguagem (esta a nomenclatura de uma disciplina de prestígio no currículo de escolas e universidades), tanto no campo da linguagem verbal, quanto no campo da linguagem visual ou verbo-visual, aquela em que um projeto discursivo se articula a partir de códigos verbal e visual, presentes num mesmo texto, com a mesma força e importância.
Muitas vezes, como disse, esse leitor ideal inexiste, e vai de encontro às nossas motivações autorais, distorcendo conteúdos, desfigurando formas. Se isso sempre ocorreu, em contextos e tempos históricos os mais diversos, hoje atinge as raias do absurdo, ao toque de teclas de celulares capazes de terminar palavras e corrigir escolhas lexicais quase sempre de modo “infeliz”. Teria exemplos disparatados a dar aqui, não fosse a necessidade de voltar ao que realmente importa: o descompasso entre aquilo que escrevemos e o que se lê depois.
Incompetência de leitura à parte, pois que toda leitura é ato de reescritura, o problema tem sido objeto de grandes estudos no campo da filosofia, da linguística, da semiótica e da hermenêutica, para me referir às mais específicas áreas de exame da linguagem.
Umberto Eco, há pouco citado, e Paul Ricoeur, deram contribuições relevantes ne tentativa de deslindar dificuldades no território da comunicação. O segundo, de modo exemplar, ressaltou o fato de que todo e qualquer texto, sendo uma produção de linguagem, é algo dotado de sentido. Mas, uma vez escrito, este texto deixa de ser propriedade do autor. Ele nos lembra que é o leitor que dá voz ao texto, quem atribui sentido àquilo que o texto tenciona dizer, quem o atualiza em cada ato de leitura. Voltamos ao ponto nevrálgico: as intenções do autor, as ideias que o levaram a produzir o texto, ficaram para trás quando o leitor interpreta o que está escrito. A essa altura o texto adquiriu autonomia e são muitos os fatores que passam a “trabalhar” no momento da leitura.
O que pretendeu o leitor encontrar no texto? Quais os valores, as “convicções” que, internalizados por ele ao longo do tempo, orientaram sua leitura? Que diálogo foi ele capaz de estabelecer com o texto, na sua estrutura, e que independe do autor?
Sob este aspecto, é fundamental que se leve em consideração que, diferentemente do que ocorre na comunicação oral, na experiência da leitura não é possível a reconstrução do discurso, a substituição de palavras ou expressões, o esclarecimento imediato das dúvidas suscitadas pelo falante ou emissor da mensagem. O texto escrito, diz Ricoeur, não pode falar senão aquilo que fixou através das palavras, ainda quando aberto a diferentes interpretações.
Paul Ricoeur chama esse movimento da linguagem de “veemência ontológica”, isto é, “a passagem do mundo do texto para o mundo da ação, que resulta da interpretação do leitor”. O texto, fixado pela escrita, submete-se às circunstâncias do leitor, aos seus equívocos, acréscimos, distorções. Eco chama isso de superinterpretação, como a dizer que a “abertura” do texto é algo limitado. Mas não quero incorrer aqui e estruturalismos fora de moda.
Desculpando-me pela aridez da coluna, pelo academicismo da abordagem, lamento não dever ir mais longe na minha reflexão sobre o tema, tão oportuno num tempo de comunicações velozes e juízos apressados. Tantos autores, estudiosos, pensadores poderiam aqui ser citados, mas evitei desfigurar o que me proponho fazer a cada semana neste mesmo espaço: discutir com leveza, sem ranços professorais, o que os livros e a vida me têm ensinado. Que Hans-Georg Gadamer me perdoe.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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