Quase noite em Copacabana

24/08/2024

A nossa verdadeira nacionalidade é a humanidade, são palavras de H. G. Wells, em “Uma breve história do mundo”, se não me trai a memória. Trago-as comigo ao sentar diante do computador para escrever a coluna do jornal.

Era janeiro de 1996, quase noite em Copacabana. Tomávamos um chope, meu irmão Deusdedith, Sulene, minha esposa à época, e eu, num bar da Av. Atlântica, no Rio de Janeiro. De repente, em meio à agitação, visualizo, a coisa de cinco ou seis metros, em pé, na esquina, o antropólogo Darcy Ribeiro, uma das figuras humanas que mais admirei entre os grandes brasileiros.

Levanto-me e, meio que não querendo nada, aproximo-me desse homem de sobrancelhas espessas tal qual as cerdas bravas de um javali, como diria Nelson Rodrigues. Darcy alforriava o olhar pela imensidão do mar de Copacabana, deslumbrado como um turista que visitasse o Rio pela primeira vez.

Ao perceber a minha aproximação, com a elegância de um doge veneziano, Darcy Ribeiro cumprimenta-me, distinta, gentil e simpaticamente. Breve aperto de mão e dirige-me a palavra como a um velho conhecido. Pergunta-me de onde sou, se já estivera na cidade, se estou gostando…

Darcy Ribeiro era apaixonado pelo Rio, pude concluir da verdadeira declaração de amor que fez à Cidade Maravilhosa, tingindo de poesia a noite anunciada, mal trocamos as primeiras palavras.

Sabendo-me cearense, alude à beleza de nossas praias e cita, de cor, um longo trecho de Iracema, aquele em que o romancista exalta os “Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba. Verdes mares que brilhais como líquidas esmeraldas aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros. Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.”

Pelos em festa, abraçamo-nos como dois amigos. E jamais nos havíamos visto antes.

O entusiasmo com que Darcy “recita” esses trechos do romance de José de Alencar impressiona-me, a expressão medida, a voz e os gestos em rigorosa harmonia. Só horas depois me ocorre lembrar que, tratando-se de um romance indianista e considerado o exemplar mais bem escrito da prosa de ficção romântica brasileira, e sendo o antropólogo um amante da causa indígena, a vibração do meu interlocutor era coisa natural, nascida da mais elevada consciência da verdadeira nacionalidade.

Darcy amava o Rio, dizia eu, há pouco, embora tenha nascido em Minas Gerais. Aliás, o autor do romance “Maíra” não era mineiro ou carioca. Era uma coisa e outra, mais que isso, Darcy Ribeiro era paulista, alagoano, cearense… Darcy Ribeiro era um País, um Continente.

Não me ocorre lembrar de outro brasileiro que tenha amado mais o Brasil, a que dedicou a força prodigiosa de sua inteligência e do seu trabalho. Vou mais longe: o autor de “O dilema brasileiro” e “Os índios e a civilização” carregava dentro de si uma nação pungente e vibrante. Um território sem fronteiras.

O nacionalismo de Darcy Ribeiro encerrava continentalidade. A América Latina era a sua Pátria e a sua paixão, a sua razão de viver.

Ao cabo de uns quinze, vinte minutos, Darcy estende-me a mão num gesto de despedida, não sem antes reafirmar seu carinho pelo Ceará. Há brilho nos seus olhos e firmeza na sua voz ligeiramente rouca, como se a entoar uma canção, de tão doce e terna. Havia em Darcy Ribeiro um tipo de encanto, de luminosidade.

Em Porto Alegre, algum tempo depois, vejo numa livraria o último livro que escreveu, “O povo brasileiro”, bela interpretação de nossas origens, de nossa fundação e do cruzamento de raças que fez de nós um povo diferente. No hotel, li-o quase por inteiro numa noite, maravilhado.

Era assim Darcy Ribeiro. Seus textos traziam o traço forte e inconfundível dos escritores notáveis, a grandeza de um gigante, de um homem limpo, de um ser absolutamente iluminado.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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