O Homem que Matou Getúlio Vargas é uma obra de ficção histórica escrita por Jô Soares (1938-2022) e publicada em 1998. Com seu estilo característico de humor, Jô constrói uma narrativa recheada de ironia e inteligência, misturando fatos históricos com situações cômicas e absurdas. O livro retrata a trajetória de Dimitri Borja Korozec, um fictício anarquista nascido na Croácia que, ao longo de sua vida, tenta matar várias figuras históricas, mas acaba falhando em todas as suas tentativas. O ponto culminante de sua trajetória é o atentado que resultaria na morte de Getúlio Vargas, o presidente do Brasil à época.
O protagonista, Dimitri, é descrito como uma figura excêntrica, fruto de uma educação singular e marcada por influências múltiplas. Ao longo de sua vida, Dimitri atravessa diversos episódios históricos, como a Primeira Guerra Mundial, o auge do anarquismo europeu e os momentos de ebulição política no Brasil, sendo sempre envolvido em conspirações e tentativas de assassinato. No entanto, seu maior trunfo é a forma como suas falhas se desenrolam, transformando suas aventuras em episódios tragicômicos.
A obra de Jô Soares é permeada por referências históricas, mas com uma abordagem leve e cômica, o que faz com que o leitor se depare com figuras como Winston Churchill, Leon Trotsky, Adolf Hitler, entre outros, todos envolvidos de forma caricata e satírica nos planos desastrosos de Dimitri. O autor utiliza essas figuras para subverter a seriedade dos acontecimentos históricos, criando uma espécie de fábula política que brinca com o imaginário do leitor.
Outro aspecto interessante da obra é o estilo narrativo. Jô Soares mescla o uso de narradores oniscientes com diálogos dinâmicos, além de utilizar descrições detalhadas que muitas vezes contrastam com a leveza dos acontecimentos. Há uma constante tensão entre o real e o absurdo, fazendo com que a narrativa flua com naturalidade, mesmo em seus momentos mais delirantes.
O Homem que Matou Getúlio Vargas é, portanto, uma obra que combina o cômico e o histórico de maneira única, proporcionando ao leitor não só uma imersão nos eventos políticos do início do século XX, mas também uma reflexão divertida e sagaz sobre a aleatoriedade da vida e do destino. Através de seu protagonista, Jô Soares oferece uma visão inusitada dos grandes acontecimentos que moldaram o Brasil e o mundo, reimaginando-os com sua marca de humor inteligente e bem afiado.
As Esganadas
As Esganadas é uma obra de ficção escrita por Jô Soares (1938-2022) e publicada em 2011, que mistura humor e suspense de forma singular. Ambientada na década de 1930, no Rio de Janeiro, o livro segue a história de um serial killer que tem uma peculiaridade macabra: suas vítimas são sempre mulheres obesas. Ao longo da trama, Jô Soares explora o contraste entre a brutalidade dos assassinatos e o tom cômico, resultando em uma narrativa envolvente, que prende o leitor tanto pelo mistério quanto pela ironia e sarcasmo presentes em cada página.
O vilão da trama é Caronte, um psicopata cuja obsessão por mulheres gordas o leva a matá-las de forma meticulosa e bizarra: ele as sufoca com iguarias típicas da culinária brasileira. Caronte é um personagem complexo, que carrega traumas de infância e uma visão deturpada da realidade, o que o torna ainda mais aterrorizante. Apesar de seus atos hediondos, o autor constrói uma figura que, em certos momentos, pode até despertar uma curiosidade quase mórbida por parte do leitor.
Paralelamente, o livro conta com a presença de delegados e investigadores que, com muita sagacidade e doses de humor, tentam desvendar os crimes de Caronte. Entre eles está o detetive Mello Noronha, personagem central na caçada ao assassino. Mello Noronha é um investigador arguto, porém caricato, que representa a figura do policial dedicado, mas envolto em uma atmosfera de ironia e, muitas vezes, desespero diante das pistas escassas que tem em mãos.
Jô Soares consegue, em As Esganadas, construir um universo repleto de personagens interessantes, que transitam entre o grotesco e o cômico. O Rio de Janeiro dos anos 1930 é recriado de forma vívida, com descrições detalhadas dos cenários e do cotidiano da cidade, o que enriquece ainda mais a narrativa. Além disso, o autor incorpora elementos históricos, como a política da época e as nuances culturais, que ajudam a contextualizar o enredo e aumentar a imersão do leitor.
O ponto alto da obra é a maneira como Jô consegue equilibrar o suspense com o humor. Embora a premissa central seja sombria – um assassino em série que escolhe suas vítimas por conta de seu peso –, o autor utiliza diálogos ágeis e situações inesperadas para quebrar a tensão, muitas vezes levando o leitor a rir em momentos de grande dramaticidade. Esse contraste é uma marca registrada de Jô Soares, que, com maestria, transforma um enredo potencialmente trágico em uma comédia de humor negro.
Além disso, a crítica social está presente de forma sutil, especialmente no que diz respeito à maneira como a sociedade enxerga o corpo feminino e o padrão de beleza. Ao focar em mulheres gordas como vítimas de um assassino, o autor lança um olhar ácido sobre preconceitos e estereótipos, questionando, de forma implícita, a obsessão da sociedade com a magreza e o julgamento do corpo alheio.
As Esganadas é, portanto, uma leitura instigante, que alia mistério e comédia de forma brilhante. Jô Soares mostra mais uma vez sua habilidade como contador de histórias, criando uma obra que, ao mesmo tempo em que diverte, provoca reflexões sobre os padrões sociais e os limites entre o grotesco e o humorístico.
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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