Aproximei-me do ser. Reparei que seu corpo era translúcido. Suas pernas fundiam-se a uma pequena nuvem que o conduzia para onde desejasse. Sua cabeça era ornada por uma pesada cabeleira crespa com um brilho que lembrava uma aréola angelical. O ser não esboçou reação ao me ver tão próximo. Apenas olhava.
— ‘‘Não voltes ao passado! Nunca mais será como antes!’’
— ‘‘Não voltes ao passado! Nunca mais será como antes!’’
— ‘‘Não voltes ao passado! Nunca mais será como antes!’’
Não entendia o porquê daquela repetição; parecia mais um mantra, algo místico, afinal, estava eu diante de um ser não humano. Uma criatura de outro plano ou planeta. Pedi que ele proferisse algo para além daquela sentença maldita. No que ele respondeu:
—Trocaram as vestes, as cores, curvas terminais e o modo peculiar da senda. Trocaram também o sentido, agora, não concomitante com o seu. É necessário dispersar, assim, os diversos engodos e suas linhas de tropeço. Diante do tempo, o nada parece mais atrativo, mas não mais satisfatório.
Não entendi o que ele queria dizer com aquilo. Mas ele continuou:
— Ao menos sabemos de carnes podres e suas hipocrisias astutas subestimando os homens que velam por algo. Essas almas de nada servem, nem para Deus nem para o Demônio…
Compreendi. A criatura falava sobre a brevidade do tempo e a futilidade e impotência do homem ante a vida e a morte; sobre o inevitável caminho e destino errante do homem. Não adiantava o que fizesse, um dia, nada mais fará sentido, pois tudo passará (é bíblico, inclusive). Somos um instante que passa demasiadamente rápido, frívolo. Viver no passado é perder ainda mais tempo. Devemos apenas lembrá-lo com saudosismo, não buscá-lo no presente.
A criatura pareceu ter percebido que eu havia compreendido sobre. Seus olhos voltaram ao amarelado quase dourado de antes. Olhou-me a planou pelo jardim fazendo um pequeno vento se formar em forma de cone; um minúsculo ciclone. Eu assistia à cena insólita enquanto entornava mais uma dose da vodka, que agora parecia-me mais tragável e doce.
Aos poucos, o espectro foi sumindo na escuridão da noite e me deixou a sós com a minha sensação de vazio existencial e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, com uma paz em saber que nada pode ser feito em relação à vida e à morte, como os estoicos criam. No fim das contas, não matei o espectro, mais morri um pouco mais antes de morrer de um todo neste dia. Tomei meu último gole e apaguei.
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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