Raflezia sempre foi uma pergunta sem resposta. Tantos anos se passaram e essa pergunta ainda aparece nos dias de insônia ou ânsia.
Depois de sua partida, muito se apontou para os seus pecados. Mas, para mim, ela representava uma transgressão de outra ordem.
Corria o início do novo milênio. Mais precisamente: estávamos em 2001. Nossa cidade recebera um CVT (Centro Vocacional Tecnológico). Meninos e meninas, atônitos com a novidade, trocavam a praça pelas salas brancas, virgens, e seus computadores igualmente brancos e virgens.
A cidade também se enchia de motos pequenas; feitas, ao que parecia, para adolescentes metidos a besta.
Era uma época boa, mas sem pessoas interessantes, até ela chegar. Um dia ela passou frente à minha casa: na parte de trás da moto, de banda, com as pernas cruzadas.
Nunca vi coxas mais insinuantes, mais cheias de volúpia – e olha que ela ainda estava se formando… “Meu reino por aquelas coxas!”
Trajava um vestido azul, com drapeados, feito uma onda. Os ombros fortes e firmes, os cabelos soltos, esvoaçantes.
Naquele momento toquei as espinhas do meu rosto e me dei conta de que era feio, e que também não tinha nem teria uma moto para convidar uma menina daquelas para passear.
Não me ocorria que, por um milagre da tecnologia, eu poderia ser outro, outro muito diferente.
Não foi difícil achar o que procurava. Não seria possível existirem duas Raflezias no mundo.
Eu a encontrei na sala de bate-papo chamada “mundo pequeno”, uma sala criada pelos adolescentes de nossa cidade.
Ela demorou a me perceber. Todos falavam e cada um queria aparecer para ela, até as meninas. Então eu lancei uma pergunta embaraçosa.
Eu quis saber quem estava assistindo “Presença de Anita” escondido dos pais. Houve risinhos.
Mas ninguém se manifestava. Até que ela rompeu o silêncio e disse, para assombro geral, que assistia e que não estava achando nada demais.
A partir dessa resposta intrépida, começamos uma conversa que durou até 2011, o ano em que ela sumiu.
Logicamente ela não sabia quem eu era. À época, eu usava um pseudônimo. E assim permaneceu por meses.
Assim como todo menino faz para “aparecer” diante de uma menina, menti. Disse que meu pai era médico etc., mas que ele clinicava em outras cidades, que eu mal o via etc.
Ela também me parecia mentir. Dizia que era “pior” que a Anita da TV. E falava de coisas que eu desconhecia. Ela dizia que o cinema tinha muito mais cenas de nudez que a TV; que já tinha lido, clandestinamente, os livros eróticos da mãe, que era professora.
Engraçado. Faz tanto tempo desde a última vez que nos falamos. De nossa última briga.
A esta altura o leitor deve querer saber sobre os tais pecados pelos quais ela ficou conhecida em nossa pequena cidade. Confesso que estou ainda hesitante em contar.
Até porque, como disse no início, para mim ela só cometeu um grande pecado, e foi isso que eu disse na última conversa que tive com ela:
– Você me deu esperança.
Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.
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