A mais bela das mentiras

01/03/2025

Curiosamente, foi meu pai quem despertou em mim o gosto pelo cinema. Digo ‘curiosamente’ por se tratar de um homem simples e de pouca escolaridade. Uma vez por semana, quando menos, papai nos levava ao Cine Alvorada (ou ao Cine São José), para assistir a filmes. Ele adorava western, filmes de ação, luta e tiroteios. Eu achava isso interessante, porque meu pai era o mais pacífico dos homens, e, no entanto, não perdia uma película que tivesse ação, briga, tiros, como aqueles que tematizavam a luta pela posse da terra entre exploradores e índios, a oeste do Mississipi. Seus olhos brilhavam diante da tela e, inconscientemente, ele chegava a se movimentar na cadeira como se participasse daqueles enfrentamentos entre bandido e mocinho. Ah, meu velho e inesquecível amigo!

Lembro que assistia com ele a todos os filmes de Tarzan, notadamente os de John Weissmuller, o nosso favorito. Mas víamos quase tudo que chegava aos cinemas da cidade. Amava Greta Garbo, Joan Crawford, Clark Gable, Spencer Tracy, Clint Eastwood, Giulliano Gemma, entre outros. O nosso ídolo, contudo, era John Wayne. Dele, acho que vimos tudo o que chegou até Iguatu: “Sangue de heróis”, “No tempo das diligências”, “O anjo e o bandido”, “Rio vermelho”, “Caminhos fatais”, “Rio bravo”… Não éramos, por óbvio, esteticamente exigentes — o subgênero western de produção italiana das décadas de 1960 e 1970, por exemplo, atraía-nos como a dois meninos.

Hoje, com certa frequência, revejo filmes daquela época e me sinto menino outra vez. Dói-me pensar que meu pai não tenha alcançado o videocassete, o DVD, com seu making of, o “quadro a quadro”, a facilidade de localização de cenas etc., e, principalmente, em cópias ou streaming, com a qualidade não raro superior ao original… E pensar que acumulei mais de três mil filmes em casa…

Como fosse um pequeno comerciante, e trabalhasse em sua própria casa, recordo que todos os dias, a uma dada hora da tarde, um de nós, seus filhos, ia para a mercearia a fim de que papai pudesse assistir a um ou outro filme. Ele se divertia com isso, era a sua única distração. Quando nos deixou, com o golpe implacável de sua depressão, lembro que passei algum tempo sem ver os filmes da tevê. Causava-me arrepios passar diante do aparelho e ver os filmes vespertinos que meu pai tanto apreciava, os olhos verdes projetados na poeira vermelha de Monument Valley…

Algum tempo depois, Alvorada e o São José fechados, inaugura-se outro cinema na cidade: o Cine Coliseu. A essa altura, já mais adulto, tinha eu uns 15, 16 anos, o hábito de ver filmes crescera e se tornara, obviamente, mais exigente. Passei a estudar cinema, a selecionar o que via, num universo de opções extremamente pobre, claro, a se enriquecer com a leitura de artigos e reportagens (poucos) sobre a sétima arte. Um dia me tornaria professor universitário, a lecionar, entre muitas matérias, estética do cinema, a dividir com meus alunos e alunas o mais encantador dos enamoramentos…

Por essa época, aqui e além, contudo, chegava até Iguatu um ou outro filme pouco condizente com as expectativas dos cinéfilos da cidade. Recordo que assisti ali a alguns clássicos da história do cinema, parte deles, contudo, em versões reescritas, como, por exemplo, “O homem que ri”. Não a primeira adaptação do livro de Victor Hugo, que veria muito tempo depois, sob a direção de Paul Leni. Era uma releitura, sonorizada, diferentemente do preto e branco americano, silencioso e belo. Ocorre-me recordar a história.

O roteiro me desconcertou quando o vi a primeira vez. É um dos clássicos do expressionismo e conta a saga de um homem bom condenado a rir a vida inteira. Explico-me: Gwynplaine, o nome do protagonista, órfão, é pego por um bando de bandidos, que o desfiguram a golpes de faca. Daí o riso monstruoso, largo e patético.

Volto no tempo.

Gwynplaine salva uma menina e cresce junto a ela sob os cuidados de um produtor de vaudeville. Já grandes, trabalham juntos em espetáculos do pai adotivo, vindo a ficar apaixonados. Detalhe importante para a dramaticidade da obra é que a jovem é cega e, portanto, não pode ver a deformação do rosto de Gwynplaine. Uma bonita história de amor. Coisas lindas da literatura e do cinema,

Como o filme de Line fosse uma raridade, tive o privilégio de vê-lo na Casa Amarela, obra do amigo Eusélio de Oliveira, que seria brutalmente assassinado poucos anos depois. A versão que vi, há uns 40 anos, é outra, não menos interessante.

Nessa época, vi, ainda, outros dos meus filmes prediletos. Lembro de “Gritos e sussurros” e de “Morangos silvestres”, de Ingmar Bergman, que viria a ser o diretor da minha adoração; “Rastros de ódio”, com John Wayne e, pasmem, “Jules et Jim”, com a curiosa tradução de “Uma mulher para dois”, de um certo François Truffaut, um dos maiores da história do cinema, e um dos meus realizadores prediletos não me custa dizer. Não surpreende que a película constituísse um fiasco de bilheteria, e o dono do Coliseu, Enéas Paulino, limitasse sua exibição ao dia da estreia.

“Jules e Jim”, ou “Uma mulher para dois”, como queiram, narra a história de dois amigos, um francês e um austríaco, que se conhecem em Paris e ficam amigos por toda a vida. O filme, a que assistiria mais de uma vez algum tempo depois, e o teria sempre ao alcance da mão, foge à gramática americana, mais ‘didática’ para o espectador, com suas tomadas de abertura pondo em evidência a ambientação das cenas. Truffaut, com sua ‘pressa’ em narrar histórias, sua agilidade cinematográfica inconfundível, apresentando-me outras formas de fazer cinema. Truffaut, o nome a revelar o gênio.

A porta estava aberta para os grandes nomes do cinema. E vieram Rossellini e o neorrealismo, “O Medo”, “Roma, Cidade Aberta”, “Viagem na Itália” a me tirar o folego… Veio Michelangelo Antonioni, a sondar, como um Dostoiévski do cinema, os meandros mais sombrios de nossa alma; veio Kurosawa, vieram Kubrick e Altman; vieram Woody Allen, Pasolini, Tarantino; veio Glauber Rocha, vieram Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, Walter Salles…

O mundo, tal qual as nuvens no céu, se transformando — e eu, como se pela força de um sortilégio, amando, acreditando na verdade da mais bela das mentiras.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

 

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