Capital Mundial do Livro

26/04/2025

Como no verso de uma de suas mais aclamadas canções, o Rio de Janeiro continua lindo. Vimos à cidade, entre outras coisas, para assistir ao show “Tempo Rei”, último da carreira de Gilberto Gil em palco. Enquanto esperamos o início do espetáculo, entre um e outro gole de vinho “safra-ruim”, comprado num quiosque próximo de onde estamos, fico a reparar no cenário parcialmente iluminado.

Há, nos momentos que antecedem o início de um show, de uma peça de teatro ou mesmo de um filme, antes que se apaguem as luzes e se abram as cortinas, algo indefinível, uma magia sem nome, como uma sensação de estranhamento, um misto de curiosidade e cúmplice emoção. Noutras palavras: há na arte algum sortilégio, uma força que emana do improvável e toca fundo nossos corações.

É o que sinto, enquanto trocamos impressões sobre as instalações da casa de shows, no coração da Barra, e, na contramão do que é recorrente em grandes eventos do gênero, o nível de organização, que nos impressiona. Tudo certinho, bem cuidado, desde a recepção, a passos da entrada, por moças e rapazes vestidos a caráter com roupas alusivas ao show, à acomodação propriamente dita — o palco gigantesco a nossa frente.

No alto, uma espiral metálica que lembra o viravoltear de uma serpentina. Só começado o show, Gil conduzindo-se como se fora um menino, da vastidão de seus mais de oitenta anos, voz e violão arretados, pudemos perceber que serve o inusitado adereço para projetar sobre a multidão a fina poesia do artista baiano, oscilando o público entre o silêncio deslumbrado e a incontida movimentação de uma dança que se confunde com um ritual sagrado.

Na última turnê de uma carreira exemplarmente vitoriosa, Gilberto Gil parece cantar como nunca, como se o tempo, ao invés de lhe estragar a voz, desse a ela um brilho novo, uma afinação que se tornou irretocável, um jeito de escandir palavras e articular falsetes que dizem, no apagar das luzes de uma carreira brilhante, o que só aos grandes artistas, à maneira de Dostoiévski, é dado dizer: “A beleza salvará o mundo”.

***

De agora até abril do próximo ano, o Rio de Janeiro é a Capital Mundial do Livro. De Estrasburgo, França, a Cidade Maravilhosa recebeu neste mês a “tocha literária”, e a empunhará como símbolo da luta dos poderes constituídos em favor da leitura, da literatura, do livro.

Do palco do Teatro Municipal, ancorando-se nas potências da Inteligência Artificial, ouvem-se as vozes de Machado de Assis, Olavo Bilac e Rui Barbosa, como se renascendo das páginas de livros gigantes que decoram o cenário do mais belo dos teatros brasileiros na solenidade de abertura da efemeridade.

O negativismo das previsões sobre a sobrevivência do livro físico, golpeado pelo livro eletrônico e outras mídias digitais, é felizmente contrariado: pesquisas apontam que o mercado do livro eletrônico atinge hoje, no Brasil e na Europa, algo em torno dos 6% ou 7% dos livros vendidos. Ao redor dos 94% do mercado, pasme o leitor, são de livros convencionais, esses que folheamos em contato direto com o papel, de que acariciamos a textura e respiramos o perfume inconfundível de que se enchem os nossos pulmões antes da boa leitura.

A contar positivamente na busca de incentivos ao hábito de ler, entre outras ações que se traduzem na reabertura de livrarias e melhoramento das bibliotecas existentes, salta aos olhos a belíssima iniciativa governamental de proibir o uso de celulares nas escolas. Há poucos meses da adoção da medida, já se constatam avanços no rendimento escolar (em matemática, línguas e interpretação de textos) e aumento na frequência às bibliotecas dos colégios de ensino médio, além de terem caído os eventos associados à prática do bullying e cyberbullying.

A demandar iniciativas, afirmam livreiros e especialistas, ainda constitui um desafio o preço dos livros no Brasil. Não se trata de tabelamento, mas do preço fixado pelos editores, hoje brutalmente elevados.

Capital Mundial do Livro, o Rio de Janeiro é, por longo tempo, muito mais que samba, bundas e carnavais. Regozijemo-nos.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

 

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