Cauby Fernandes*
Acordara mais tarde naquele dia. Depois de passar a manhã inteira no banheiro, regurgitando o pouco que comera na noite passada, voltou à cama. Acendeu um cigarro e olhou pela janela o vazio sepulcral típico das manhãs de domingo.
Sinara perdera-se no tempo. Sentia que não pertencia a esta vida, a esta geração que, segundo ela, cansava de repetir: “Não sabe que não sabe de nada”. A vulgaridade, os valores perdidos… tudo a incomodava. Dizia beber para esquecer que estava viva.
A sua vizinha, a viúva da rua, era uma das poucas pessoas com as quais ela mantinha, com certo esforço, raríssimas conversas em largos espaços de tempo. A causa da sua misantropia era desconhecida. Dizia-se que foi caso de perda na família; outros arriscavam supor que era questão de amor não correspondido. O mais certo é que ninguém, de fato, sabia verdadeiramente.
Sinara pensa ter escutado alguém bater à porta. Levanta-se e vai ver quem poderia ser – quase nunca recebe visitas. Não era ninguém. Ao retornar para a cama, tonta, deita-se no meio do caminho, no chão do corredor. Sua boca seca anseia por uma gota de álcool. A solitária moça alcança uma cadeira para, por intermédio dela, escalar e recompor o andar ereto de antes.
Duas cervejas e três azeitonas depois, a jovem já estava recostada na confortável cadeira de leitura. Lia, sob a luz amarelada do abajur, Allan Poe. O conto? O Gato Preto (um clássico do mestre Poe!). Sinara, na verdade, gostava da vida sombria que levava. Gostava da sua solitária companhia; das agruras que viraram suas companheiras de copo; das noites em claro, lendo sem cessar, grandes nomes da literatura mundial.
Um barulho vindo do quintal acabou por interromper a sua leitura. A moça vai verificar o que estaria acontecendo. É como se alguém tivesse pulado para dentro da sua casa. Manchas negras são notadas pela moça, na parede. Sinara tem medo e corre para o seu quarto. Um vulto a acompanha e a alcança. De repente… silêncio mais uma vez… o sepulcral domingo, um corpo caído ao chão…
Dias passados, o forte odor de putrefação faz com que a polícia, por intermédio da denúncia da viúva da rua, encontre o corpo de um homem na casa de Sinara. A morte veio buscá-la, mas ela, a solitária moça, assassinou-a em legítima defesa. Isso explica o crime, mas não a permanência do cadáver, por dias, na casa da jovem.
– Quis assistir à deformação que a morte faz ao maldito ser humano – Respondeu Sinara ao delegado.
*Contista, cronista, desenhista e estudante universitário
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