“Fazia um calor de rachar catedrais” – Nelson Rodrigues
Fazia um calor atroz naquela tarde de agosto. Lembro-me de que estava numa fila quase indiana. O calor aumentara junto a conta de luz; impacientava-me com a demora. Havia esquecido o livro que andava a ler, de modo que me contentei em olhar para a mulher que estava à minha frente. Baixa, morena de coxas firmes e bunda roliça: fazia exatamente o meu tipo. O rosto não me agradava tanto quanto o corpo, mas fuck is this. Puxei assunto da forma mais clichê possível: comentei sobre o tempo. Ela concordou que estava insuportável viver assim e tal.
Confesso que fiquei descontente comigo mesmo. Porra, eu era letrado, confiante, direto, por que cargas d’água eu fui logo falar sobre o tempo? Daí me dei conta que isso é instintivo, pré-histórico, esse troço de falar sobre o tempo.
Nossos ancestrais deveriam dar em cima das mulheres assim, olhando para as estrelas, divaguei. Tentei enfeitar a conversa informando que em 2003, na França, morreram 15 mil pessoas por conta do calor. Mas o produto saiu pior que encomenda: ela me olhou com um olhar estranho, passando de um mero interesse em apressar o tempo a um aparente desinteresse total. Calei-me e me dei por satisfeito. Perdera a chance.
A fila não andava, porém. E, como disse alguém, não há coisa mais feia que a necessidade. Logo ela virou-se e comentou acerca da demora e da burocracia para pagar as contas aqui nesta cidade etc. Concordei, mas desta vez não quis me expor muito.
Começamos a falar amenidades. Aí, sim, fui eu: disse que o que tornava suportável a espera e o calor daquela tarde era tê-la conhecido. Ela sorriu. Já era. Trocamos os números. Marcamos um encontro na casa dela – morava só.
Recém-separada e com um filho de dois anos e meio, estava num misto de sentimentos: de um lado a guarda estava alta pela separação; de outro, o indisfarçável desejo de viver, de trepar, de voltar a sentir o “primeiro amor”, sempre nostálgico nas mulheres que viveram relacionamentos longos, desgastantes. Ela solicitou que eu levasse vinho. Detesto vinho, mas aquiesci.
Eu tinha tudo planejado. Deixaria ela falar, falar e eu mesmo falaria pouco. Com certeza ela iria maldizer o ex, mostrar como fora trocada por uma kids qualquer, o quanto se doou etc. Dèjá vu. Já conhecia o filme.
Cheguei quinze minutos atrasado. Ela comentou. Não são só as mulheres que não namoram há tempos que têm uma terrível necessidade de discutir; as que terminaram recentemente também sentem essa necessidade visceral, embora por motivos distintos. Abrimos o vinho. Confesso que o gosto doce me deixou meio broxa. Mas foi só ver a maneira como ela cruzava as pernas grossas que logo recobrei o ânimo. Ouvi tudo. De vez em quando queria mudar de assunto, entabular uma conversa mais sensual, tipo: perguntar logo o que ela gostava de fazer na cama. Mas não tinha jeito: tudo evocava o passado dela.
O calor não cessava durante a madrugada; estávamos a sós, sentados sobre os batentes de cimento que davam para apartamento dela. Tínhamos secado três garrafas, ou melhor, eu havia secado, ela mal tocou no vinho. Fez-se silêncio. Comecei a acariciar seus cabelos, descendo um pouco para as alças do sutiã. Ela me freou. Disse que eu estava apressando as coisas, e que naquela noite me queria apenas como amigo; que se ficássemos ali, perderíamos a chance de nos conhecermos de verdade. Eu argumentei que uma coisa não anulava a outra. Mas foi em vão. Derrotado, só me coube o papel de sair dali com dignidade, sem mostrar que, no fundo, eu só estava ali por uma razão universal: sexo.
Ela notou que depois da recusa fiquei meio sonolento. Súbito, todas as ofensas ao ex passaram a ser dirigidas a mim e, por extensão, a todos os homens do planeta. Nós éramos pintos sobre patas; só queríamos nos aproveitar das mulheres e depois jogá-las fora, como se faz com copos descartáveis no fim das festas.
Naquele momento senti inveja dos meus amigos gays; eles não têm de passar por humilhações desse tipo, acusações de machismo etc. É verdade que sofreram por séculos e é justo que tenham esse merecido descanso. Mas eu nunca fora escroto ao ponto de ser descortês com uma mulher que não me quis. Máximo dos máximos, deixava quieto e seguia a vida. Mas, paradoxalmente ao calor que não nos deixava, havia um frio nas almas e nos corpos.
Lembrei-me da França. Estávamos também mortos, só que mortos para o amor e para qualquer possibilidade de uma relação sem desconfianças indestrutíveis. Deixei as garrafas junto a um poste, próximo ao apartamento dela. O dia já raiava e eu teria de me acostumar ao tempo.
Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.
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