Há muito não lia de uma sentada um livro inteiro. O fiz, entre 20 horas de ontem e pelas duas, duas e pouco da madrugada desta sexta-feira, 29, tendo nas mãos Essa Gente, o recém-lançado romance de Chico Buarque de Hollanda. Como um Fellini de 8 1/2, no cinema, Chico narra a história de um escritor decadente, financeira e afetivamente, diante de uma crise que o leva a tentar negociar prazos com seu editor, tudo em meio aos tumultos que tomam conta do país entre o ano de 2016 e setembro de 2019.
Mas é a forma como o escritor constrói a sua narrativa que faz do romance uma verdadeira obra-prima do gênero. Misturando fragmentos de diários, mensagens, anotações diversas, Chico joga com temporalidades, pontos de vista e discursos os mais diferentes e nem sempre nitidamente concatenados, o que pode se constituir no primeiro desafio para o leitor menos atento.
Aos poucos, todavia, a narrativa vai se clarificando e se pode perceber nítidas interlocuções entre o registro memorialístico do autor e a ficção de feitio mais refinado, prova inconteste de que o artista genial da poesia encontra definitivamente seu equivalente na prosa.
Com Essa Gente, numa trajetória ascendente que se estende de Estorvo (1991) a O Irmão Alemão (2014), Chico Buarque de Hollanda só evoluiu. Não que já não fosse de alta qualidade a sua arte na narrativa de ficção, mas é que o muito bom se tornou irrepreensível. Deparamos, agora, com um romancista absolutamente consciente da carpintaria romanesca. A estrutura é sólida, em que pese, como disse, estar calcada num autêntico quebra-cabeça de situações dramáticas que se desenvolvem em torno de um núcleo central dominante, bem como se pode identificar aquilo que diferencia esta forma narrativa das de suas congêneres, o conto e a novela. Aquele é curto, o número de personagens pequeno e o desfecho quase definitivo. Esta, por sua vez, se, como o romance, apresenta uma multiplicidade de situações dramáticas, sua ocorrência se dá sucessivamente, e não simultaneamente, como no romance.
Mas as qualidades estéticas do Chico Buarque prosador vão muito além disso: na linha dos gênios da narrativa de ficção, a exemplo de um Machado de Assis, para ficar no nosso maior representante do gênero, em Chico Buarque sobressai o não dito, o não revelado, o dissimulado, o que de certo modo pode frustrar quem esperava do escritor um libelo contra o Brasil de hoje, tragado pela garganta profunda do neofascismo bolsonariano. Não, tanto quanto o poeta extraordinário, o Chico romancista transita com sutileza por sobre o chão escorregadio de um país politicamente desmoralizado. Nada aqui constitui um registro de cunho naturalista, embora sejam quase visíveis os acontecimentos de nossa realidade palpável: o golpe contra a presidente Dilma Rousseff e a prisão com motivações políticas do ex-presidente Lula, por exemplo.
Por último, dadas as limitações de espaço e os fins a que se destina esta resenha, vale ressaltar o que sobrevoa o livro de autorreferencial: há muito mais do Chico Buarque de Hollanda em Manuel Duarte que a mera sugestão sonora do sobrenome. Nada que justifique, porém, tachar o livro de autobiográfico. Apenas o olhar atento, a sensibilidade política, a percepção ideológica jamais escondida, remetem o leitor à figura incontornável do artista, testemunha de seu tempo, de fatos e cenas que não devem mesmo ser esquecidos.
No mais, o que existe de relevante por trás da história de Manuel Duarte é um romancista maduro, que demonstra, como um mestre, o quanto é descabido e desprovido de conhecimento técnico julgá-lo um escritor menor que o letrista. Se o poeta dispensa comentário, pela genialidade que sua vasta produção atesta, o romancista acaba de nos presentear com um livro digno de figurar entre os maiores do gênero publicados no Brasil nesses muitos anos.
Para não falar do componente reflexivo de uma literatura que se pensa e à própria linguagem como se fora um “romance de pensamento”, permeado de fluxos de consciência, solilóquios e monólogos, marca recorrente em boa parte da produção do Chico Buarque escritor – e da qual, sabemos, se origina o colorido plurilinguístico de qualquer grande obra de arte.
Um livro notável.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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