O Papa Francisco desculpou-se nessa quarta-feira, 1, pouco antes da oração do Ângelus, por sua reação ao entusiasmo de uma fiel que quase o fez cair enquanto beijava crianças em frente ao presépio de Natal, em Roma. Visto por centenas de milhares de pessoas ao redor do mundo, o fato ganhou visibilidade no vídeo que mostra o papa estapeando uma mulher que o agarrava pela mão no que parece ser uma atitude de incontida admiração pela figura do pontífice. Depois de desvencilhar-se da mulher, o Papa Francisco mostra-se visivelmente aborrecido, mas segue sua trajetória um pouco mais afastado do público.
As imagens, que suscitaram opiniões divergentes, servem, todavia, para nos lembrar que o papa é, antes de tudo, um homem, sujeito a emoções e conflitos nem sempre condizentes com a idealização que se faz do Santo Padre.
Esta realidade, por sinal, é um dos aspectos que dão a Dois Papas, a comédia dramática dirigida pelo brasileiro Fernando Meirelles, explorando os bastidores das diferenças entre Bento XVI e Francisco, a densidade estética que a coloca entre as grandes produções da Netflix em 2019. É sobre o filme, aliás, que gostaria de falar na coluna de hoje.
Com atuações soberbas de Jonathan Pryce e Anthony Hopkins como os cardeais Jorge Bergoglio e Joseph Ratzinger, respectivamente, logo que este fora eleito papa Bento XVI, o filme sustenta-se num roteiro, irretocável do ponto de vista dramático, assinado por Anthony McCarten, de cuja obra já se conhecia Darkest Hour, sobre o estadista inglês Winston Churchill.
Estes dois elementos cinematográficos, sabe-se, constituem o que se deve considerar fundamental num grande filme. Mas Dois Papas vai muito além disso: – A direção de arte, o figurino, a sensibilidade com que Meirelles explora os procedimentos cinematográficos propriamente ditos, a exemplo da movimentação de câmera e escolha de escala na construção do quadro, com closes que lembram o melhor Bergman, resultaram numa beleza plástica de encher os olhos mesmo dos cinéfilos mais exigentes.
A sequência de abertura, sob este aspecto, é emblemática: as páginas de um exemplar da Bíblia ‘voam’ ao sabor da brisa, enquanto se veem bispos e cardeais circunspectos ante a passagem do caixão em que está o corpo do papa João Paulo II, em 2005. O colorido do guarda-roupa, com predomínio para o roxo e o vermelho de suas vestes, está carregado de simbolismo dramático, até que a câmera enquadre num plano alto, que excede em estilo e rigor estético, a colunata da praça de São Pedro que aos poucos vai se distanciando numa sugestão poética a um tempo emocionante e bela. Está criado o clima para o desenrolar da história. Dá-se a ver o talento de um grande diretor.
Da eleição de Bento XVI como sucessor de João Paulo II à sua conturbada renúncia, o filme desliza para o eixo central do enredo: – o embate envolvendo duas linhas de pensamento, duas convicções. De um lado, Ratzinger, com seu conservadorismo e o obscurantismo de seu passado como cardeal, o conflito pessoal sobre o homossexualismo na Igreja, sua visão extremamente autoritária como condutor de fieis, sua impotência diante dos escândalos financeiros no seio do Vaticano. Do outro, Bergoglio, decidido a renunciar ao posto de arcebispo de Buenos Aires, curvado ao peso de consciência por ter negociado com a ditadura argentina nos anos de chumbo e a inequívoca inclinação para a defesa dos humilhados e ofendidos por que viria a orientar seu pontificado até hoje. Em flashback, o filme desvenda alguns mistérios em torno da vida pregressa de Francisco.
Com diálogos criados a partir de diferentes fontes, como entrevistas (raras), sermões, discursos e textos por eles assinados, o filme gira em significativa proporção em torno das divergências que separam Ratzinger e Bergoglio. Sob este aspecto, é marcante a passagem em que o primeiro repreende o segundo por suas declarações sobre algumas das questões mais desconfortáveis para o catolicismo, como o celibato e a punição contra a homossexualidade. A essa altura, é impagável a fala de Bergoglio sobre contradições e a necessidade de mudanças na Igreja Católica: – “O tempo todo, o verdadeiro perigo estava dentro, conosco”.
Esclarecedor, corajoso, menos polêmico que verdadeiro, em que pesem as questões não exploradas em toda a sua extensão, na linha das confissões feitas por Ratzinger a Bergoglio, quando a voz off de Bento XVI frustra a curiosidade do espectador num dos momentos mais dramáticos do filme, Dois Papas é a obra-prima de Fernando Meirelles, e, reafirme-se, uma das produções mais dignas de aplauso em termos cinematográficos no ano passado.
Em tempo: O final do filme, com os dois papas tomando cerveja enquanto assistem pela televisão à decisão da Copa do Mundo entre Alemanha e Argentina, em 2014, é de uma felicidade artística notável, coroando metaforicamente o confronto de duas linhas de pensamento no interior do Vaticano.
Sublime.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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