A arte que faz justiça

18/01/2020

Para o desconforto de uma fatia expressiva do público brasileiro, Democracia em Vertigem, de Petra Costa, está na disputa final pelo Oscar de melhor documentário. E não se surpreendam: com chances reais de faturar o “carequinha” por suas imensas qualidades, quer como obra documental, quer como arte propriamente dita – em que pesem as críticas desfavoráveis que se prendem, todas elas, até onde pude ver, muito mais à sua força estética que a eventuais fragilidades enquanto documentário. 

As declarações do prestigiado crítico Inácio Araújo, da Folha de S. Paulo, na edição de hoje do jornal, para trazer como exemplo um nome de peso, beira o despropósito, traindo-se como análise e dando a ver o quanto o olhar de Petra Costa sobre os acontecimentos de 2016 no Brasil (impeachment de Dilma Rousseff, prisão de Lula e eleição de Jair Bolsonaro) o incomodou indisfarçadamente.

Sem mais nem menos, Araújo refere-se ao documentário como “o mais recente nhenhenhém (sic) de Petra Costa”, comentário não apenas inconsistente para um crítico de sua estatura, mas, acima de tudo, desrespeitoso para com uma concorrente à mais elevada premiação do cinema. E brasileira, o que não me parece um detalhe desimportante em se tratando de um país que jamais arrebatou um Oscar. Complexo de vira-lata? Talvez.

Com efeito, Araújo vai na mesma direção de outro articulista da Folha, o economista e mestre em filosofia Joel Pinheiro da Fonseca, para quem (pasmem!) o “Oscar vai para… o PT”. Não se contendo em sua verve para politizar o debate, o colunista não esconde sua parcialidade e afirma que Democracia em Vertigem “reproduz a narrativa petista da história recente”, ignorando, tendenciosamente, os fatos e o que as próprias imagens do filme de Petra mostram: o conluio cínico entre deputados e senadores, Eduardo Cunha e Aécio Neves ditando as cartas, para o golpe que derrubou Dilma Rousseff.

Mas o colunista vai muito além, cospe à esquerda e à direita, corcoveia que nem o burro de Brás Cubas em sua sanha incontrolável, fecha os olhos para os avanços sociais havidos nos governos do PT, e, numa demonstração de absoluta disposição para atacar a cineasta, gratuitamente, emite a desqualificada avaliação estética do filme, ainda, pelo fato de ser narrado pela própria diretora, segundo diz, “num tom de voz lamurioso, que reforça o vitimismo da história contata”. 

Quanta ignorância do senhor Joel Fonseca, pois que a narração de documentário pelo próprio diretor é uma das características mais marcantes do gênero. Vide a produção de documentaristas do nível de Eduardo Coutinho, cuja voz está na quase totalidade de seus filmes e é aspecto notavelmente examinado por Consuelo Lins em livro sobre o realizador.

Ao externarem sua insatisfação com o fato de Petra Costa tomar posição diante daquilo que documenta, os críticos da Folha incorrem num erro de avaliação que beira o surreal, confundem documentário cinematográfico com jornalismo puro, mal disfarçam sua predisposição de achacar contra Democracia e Vertigem o rótulo de filme panfletário, alheando-se, os dois, ao fato de que dirigir um filme é antes de tudo assumir responsabilidade. Por oportunas, ocorrem-me as palavras incontrastáveis de Paul Ricoeur sobre o sentido da responsabilidade: – “Onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade. Eu diria mesmo que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos solicita. Porque o frágil está, de algum modo, confiado à nossa guarda. Entregue ao nosso cuidado.”

Talvez por isso, quem sabe, o tom de voz de Petra Costa seja mesmo lamurioso. O mesmo tom de voz com que narra Elena, outro belo filme realizado por ela sobre a irmã que se suicidou. E que exemplifica à perfeição, diga-se aqui, o quanto essa jovem cineasta sabe como poucos fazer cinema de altíssima​ qualidade.

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