Em sua Poética, Aristóteles definiu a literatura como mimesis, isto é, imitação e/ou cópia da realidade. Não a mera cópia, mas sim a recriação do mundo, sua transfiguração pela arte da palavra. Daí o poeta ser diferente do historiador: este fala do que aconteceu, aquele do que poderia ter acontecido. A literatura é, portanto, a história do que pode ser, história de finais alternativos, abertos para a interpretação do leitor.
Ora, desde os tempos mais remotos, o ser humano sempre teve de lidar com a escassez, a peste, a praga, a miséria e a finitude. É verdade que não se tem notícia de uma época tão melindrosa, que tenha tido tanto medo da morte e das contingências da vida como a nossa.
Não é, entretanto, o nosso propósito comparar épocas e contextos diversos dos nossos. O interessante mesmo é perceber como a literatura leu – e, diferente da história, leu por dentro -, a existência humana e as inevitáveis catástrofes inerentes. E faremos isso através de obras que trataram de pestes e de como os personagens, ou tipos humanos, enxergaram a tragédia que os assolava.
Talvez a mais conhecida obra literária a tratar do assunto seja o Decameron. Clássico de Boccaccio, o livro conta a história de 7 mulheres e três homens que, fugindo da peste, vão até uma propriedade rural em busca de aventuras, amor, sexo e histórias. Interessante que a peste assolava, vejam só, a Itália – mais especificamente, Florença.
O livro é narrado pelos diversos personagens, inclusive pelas mulheres – algo novo para a época. Os tipos humanos que encontramos ali não são muito diferentes de alguns que conhecemos. São tipos que preferem a evasão, a fuga da realidade. Sem se importar com a sorte dos demais, escondem-se da morte pela celebração da chamada vida vivida: álcool, histórias sobre sexo, degradação e aventuras.
Não que um gênio como Boccaccio reduzisse seus personagens a tais buscas. Tinha mais a ver com uma visão idealista que cria que a única maneira de fugir da crueza da vida era através da imaginação, de viver a vida de outras vidas. Não seria essa, afinal, uma das grandes funções da literatura? Responda o leitor.
Já em a Peste, de Albert Camus, temos um cenário mais sombrio. Numa pacata cidade da Argélia, uma doença vinda de ratos começa a se proliferar. É o ressurgimento da peste bubônica, que faz com que os moradores fiquem presos em suas casas, num estado de sítio. Alguma semelhança com o Brasil de 2020?
A grande reflexão do livro, que é narrado por um médico chamado Bernardo Rieux, é de que não somos tão livres quanto imaginamos. Nossa vida às vezes é decidida por uma canetada de cima, dos poderosos; às vezes o fator decisivo é a solidariedade que surge em meio ao caos, mudando o rumo de nossa caminhada. E é, também, sobre como o indivíduo, em tempos de crise, se dissolve na coletividade, abandonando a visão de um individualismo rasteiro. É mutualidade ou morte.
Poderia citar o não menos conhecido livro Ensaio sobre a cegueira, de Saramago. Lembrar o quanto somos egoístas num momento em que deveríamos ser mais solidários – os cegos que exploram outros cegos, na obra citada. Mas prefiro ficar com a lembrança de Nelson Rodrigues, em suas memórias.
Após narrar os horrores da gripe espanhola, que matava mil cariocas por dia, de modo que os lixeiros jogavam os corpos junto aos sacos de lixo, Nelson conta que a isso se seguiu o Carnaval, que, nas palavras dele, fora o mais pornográfico do Rio de Janeiro de então. As pessoas já não tinham pudor, ficavam nuas, agarravam-se, beijavam-se com fúria, voracidade. Parece que a proximidade com a morte naqueles tempos fez com que as pessoas revissem o valor da vida. De sua vitalidade.
Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.
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