Intoxicação aguda e transitória

10/04/2020

Antônio Pereira de Oliveira

Sentara-se àquela mesa de bar para descansar um pouco e, simplesmente, molhar o bico. Ardia-lhe o juízo. O salário, uma miséria, dava somente para aluguel de casa, a escola dos filhos, o mal passadio e pequenos desfrutes. Em caso de doença, dormia noites inteiras na fila, que dobrava quarteirões para conseguir um atendimento pelo Sistema Único de Saúde. A contribuição para a Previdência Social, entretanto, era descontada, pontualmente, na folha de pagamento, a cada trinta dias. Ficou um bom tempo a remoer seus problemas e quando deu por si, quatro, ou cinco garrafas de cerveja vazias achavam-se ao pé da mesa. Bebera além da conta, embriagara-se. No alcoolismo ninguém fica somente na primeira beiçada.

 De meio lastro a queimado, era nessa situação que fugia à loucura da vida, para abraçar, uma loucura inda maior.   Anestesiara a alma e o coração, perdera os sentidos. Não tinha consciência de coisa alguma, nada de mal podia ser-lhe imputado. A embriaguez assegurava-lhe impunidade e, quem sabe, até foro privilegiado, prerrogativas de algumas figuras do poder que, neste país, usam dessa manobra para, despreocupadamente, praticarem seus crimes.

Só a muito custo, conseguiu dar os primeiros passos em direção a casa.   A firmeza do corpo não estava de todo comprometida, mas não estava seguro.   Bordejava ao longo da caminhada, como bordeja, o equilibrista no passeio sobre o arame no circo. Um desastrado tombo das alturas daquele porre homérico podia ser fatal.

Em vão esforçava-se para disfarçar   o seu lastimável estado. Perdera o controle de tudo.  O cabelo desgrenhado caí-lhe sobre o rosto, O olhar vagava sem direção. Cumprimentava todo mundo com um sorriso idiota, articulando palavraras incoerentes, sem nexo. No momento, era a imagem do triste desmonte, fibra por fibra, do homem, feito a imagem e semelhança do Criador.

Só Deus estava vendo a peleja. Aos trancos e barrancos, enfim chega em casa. Encara a esposa, levanta a mão, aproxima a extremidade do dedo indicador a do polegar dizendo, eu bebi um tiquinho assim. Alarmada a mulher chama um médico. No outro dia, quando acordou em meio a uma bruta ressaca, a mulher comunica o resultado do diagnóstico – intoxicação aguda transitória – e ele sorrindo graceja –  eu tinha certeza que não era nada, só não sabia é que um pileque, tinha um apelido tão bonito.

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