Caprichos do destino

18/04/2020

Antônio Pereira de Oliveira

Quando à tardinha, eu passava para a reza do terço, vez por outra, dava por ela à janela da casa onde estava hospedada, bem ao lado da igreja. Ela não era da minha cidade, viera de numa cidade vizinha para estudar na Escola Normal das Freiras. Preferiu hospedar-se em casa de amigos, ao internato no estabelecimento de ensino das religiosas.

Essa jovem normalista era católica praticante, muito recatada, boa menina, bonita, obra-prima do Criador, feita em momento de sublime inspiração. De tanto nos avistarmos nos ofícios piedosos da paróquia, tornamo-nos conhecidos. Não raro detínhamo-nos em dois dedos de prosa. Éramos jovens, tínhamos o quê? Cerca de 16 anos de idade. Isso nos aproximava, a despeito da enorme diferença de posição social. Ela era rica, não era preconceituosa e eu, por minha vez, uma figura apagada da plebe. Tinha somente, em meu favor, um espírito alegre e era muito comunicativo, o que me facilitava livre trânsito, onde quer que fosse. Por isso travamos não uma amizade, mas apenas uma camaradagem própria da idade. Nunca falei em namoro, não podia, seria meter os pés pelas mãos, contentava-me apenas em vê-la, sentir a sua presença. Um dia essa linda normalista sumiu, voltou para suas origens.

Chegou a época de prestar serviço militar. Para facilitar isso ao jovem no interior, foi criado na minha cidade o Tiro de Guerra, livrando-nos do deslocamento até a capital para servir ao exército. O sargento instrutor, caprichoso, zelava tanto pela eficiência, como pela apresentação de sua tropa, de atiradores e exigiu o uso de um uniforme assemelhado ao fardamento padrão do soldado do exército, isto é, tecido de cor verde oliva, calça simples, gôndola com platinas, dois bolsos frontais, e abotoadura preta vistosa e, ainda, um casquete, pela do uniforme militar, com formato de canoa usada na cabeça.

Certa feita, nosso Tiro de Guerra foi convidado para fazer uma visita ao de uma cidade da vizinhança. Fretamos um caminhão e nos aboletamos na carroceria descoberta. Em meio a viagem, paramos num restaurante para fazer um lanche e estirar as pernas. Depois do repasto, ficamos a entreter-nos, jogando bola na rodovia, mesmo fardados. No meio do jogo, a bola voando, caiu dentro da boleia de um caminhão que parou para não nos atropelar. Quando fui pedir desculpas ao motorista, para minha surpresa, a linda normalista estava na boleia, ao lado de um irmão com a bola no colo. Parecia feliz em me rever. Ao cumprimentá-la, ela disse que estava indo para o Rio de Janeiro, onde fixaria residência e, sorrindo, devolveu-me a bola. Agradeci a gentileza, desejei-lhe boa viagem e, com um peso no coração, fiquei olhando o caminhão sumir na próxima curva da estrada.

Muito tempo depois, já morando na capital, fui ao Rio de Janeiro participar de um curso de especialização, patrocinado pela casa bancária, em que trabalhava e, num dia de folga, subi ao Corcovado. No trenzinho, lá estava a jovem normalista, parecia coisa do destino. Novamente demonstrava indisfarçável satisfação em encontrar-se comigo e, aos pés do Cristo Redentor, entabulamos uma demorada conversa, ao fim da qual me convidou para fazer-lhe uma visita.  Estava morando com um irmão em um apartamento na Praia do Flamengo. Meio sem jeito, à noite, daquele mesmo dia, fui vê-la. Ela recebeu-me com a fidalguia de sempre. Por um bom tempo ficamos na varanda do apartamento, frente ao mar, desfrutando o contentamento de tão feliz encontro. Foi a última vez que a vi.

Os dias passaram, atropelando os acontecimentos, ninguém pode deter o tempo. Eu sempre lembrava-me da jovem normalista. Um dia, não sei por que cargas d’água, decidi fazer uma visita a um dos seus irmãos que tinha uma loja de artigos para homens, no centro da cidade. Já o conhecia de longe, desde quando, no interior, trabalhava numa casa de tecidos. Depois dos cumprimentos e bate-papo preliminares, perguntei-lhe pela irmã, a normalista, que, atualmente, estava morando no Rio de Janeiro.

Ela morreu de câncer, respondeu, e acrescentou, faz algum tempo. Atordoado, com a notícia, só tive tempo de dizer-lhe do meu pesar e retirei-me logo, antes que ele desse pela minha grande dor. Assim, teve fim uma história que só pude atribuir aos caprichos do destino.

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