No ‘pacote’ de expectativas para o pós-pandemia, a exemplo do que ocorre sempre que a humanidade é posta diante de grandes crises, capazes de afetar a sua lógica de normalidade, é comum que as pessoas busquem construir “discursos” que apontem, passado o pior, para mudanças na sua forma de pensar e ver as suas experiências de alteridade. É como se, diante do quadro de medos e incertezas, tão logo restabelecida a tal normalidade, todos se dispusessem a rever seus valores, suas práticas e forma de encarar a vida. E o mundo, a partir de então, fosse uma boa novidade.
O discurso da vez, também no Brasil, em meio ao caos que toma conta do país em decorrência da pandemia da Covid-19 e do desgoverno que a agrava dramaticamente, é que viremos, terminada a pandemia, a viver um “novo normal”, com mudanças significativas em tudo que diz respeito à nossa maneira de lidar com o outro e com nós mesmos, aí evidenciada a necessidade de adotarmos no dia a dia providências que nos protejam de novas doenças ou mesmo de uma segunda onda do ser invisível que transformou o mundo em poucos meses.
Como ressalta, com a agudeza de sempre, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, em belo artigo publicado pela Gama Revista, a expressão “novo normal” não é um termo recente, nem tampouco diz em realidade o que ocorreu sempre que a sociedade foi obrigada a se reinventar diante de períodos de crises de ordem política, militar, econômica ou sanitária.
Ela nos lembra que as ciências sociais se dedicaram sempre a tentar entender não como as sociedades mudam, mas sobretudo como elas se mantêm como são. O “novo normal”, assim, é um discurso que visa a acomodar uma situação em que as contradições e desigualdades permanecerão, agora encobertas por mudanças que, no fundo, reproduzirão os contrastes de sempre: estar em casa e repensar a utilização racional do espaço doméstico, por exemplo, num país em que 20% das pessoas vivem em moradias de um cômodo (em que convivem quatro ou mais habitantes) e trinta e três milhões de brasileiros não dispõem de abastecimento de água confiável.
“Novo normal” para quem? – pergunta Schwarcz.
Nesse sentido, dentre as expectativas anunciadas diante do “novo normal”, sobressaem novas formas de trabalhar, de divertir-se, de estudar etc., cujas exigências pressupõem sobretudo acesso e um perfeito domínio das novas tecnologias de conectividade, num país em que uma em cada quatro pessoas sequer tem internet em casa.
Nessa perspectiva, pois, é que o “novo normal” é o “normal” repaginado num discurso elitista e indiferente às absurdas desigualdades que sugerem a existência de muitos brasis num só.
Para qual deles estamos falando quando usamos a decantada expressão de um “novo normal”?
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
0 comentários