O adeus do Conde

06/06/2020

Fernando Dantas

Engenheiro do Tribunal de Contas do Estado do Ceará

O Iguatu, o Ceará e todo o cancioneiro pátrio estão de luto e pranteiam a partida de um dos maiores expoentes de sua história musical, o emérito compositor que, ao longo de 6 décadas, propiciou-nos momentos do mais puro romantismo, da mais incontida ternura, do mais recôndito enlevo.

Evaldo Gouveia, o Conde, despediu-se de sua imensa legião de admiradores, entre os quais, tenho a honra de incluir-me, na fatídica noite de 29 de maio de 2020, deixando-nos a todos órfãos de sua genialidade musical, de sua inspiração peculiar para compor melodias, do seresteiro, do virtuose, do mestre, do estilista de canções que receberam letras inesquecíveis de seus privilegiados parceiros e versejadores, inclusive, e principalmente, Jair Amorim, sua alma gêmea, ao lado de quem assina mais de 300 músicas que invadiram corações e almas, eternizando-se na memória do povo brasileiro.

Evaldo, autodidata da canção desde menino de calças curtas, nas feiras de Iguatu, fez brotar de seu violão verdadeiras pérolas musicais, da linhagem de “Brigas”, “O Trovador”, “Sentimental Demais”, “Conversa”, “Alguém Me Disse”, “A Noite e a Prece”, “Guarânia do Adeus”, “Que Queres Tu de Mim”, “Ninguém Chora por Mim”, “Dai-me um Luar” e centenas de outras maravilhas, a imensa maioria em parceria com o mago Jair Amorim, restando, sem o complemento dos versos, quase uma centena de melodias, pois Jair partiu em 1993, deixando o menestrel iguatuense atordoado, meio perdido, dada a sensação de vazio pela ausência do amigo de tantas criações, iniciadas com “Conversa”, em 1959, que tem registros de Hebe Camargo, Alaíde Costa, Elza Laranjeira, Cauby, o Professor, e Sílvio Silva, o “Garoto Assobiador”, primeiro a gravar “A Noite e a Prece”, retumbante sucesso de Evaldo, em letra de Almeida Rego, parceiro assíduo, anterior à Era Jair Amorim, com interpretação do antológico Trio Nagô, formado, em meados da década de 50, por Mário Alves, Epaminondas e o próprio Evaldo, poucos anos após radicar-se em Fortaleza para seguir sua vocação e seus sonhos, o trio, inclusive, gravando dezenas de músicas de sua autoria, com letras de Rego e, principalmente, de Jair.

Na condição de colecionador e pesquisador da obra de Evaldo Gouveia, estimo que, de sua lavra, foram vertidas para a MPB mais de 600 canções, que, juntas, mereceram mais de 1.500 gravações, várias delas regravadas sucessivamente, nas vozes dos mais renomados intérpretes nacionais, quiçá cumprindo à desolada Liduína, às autoridades e ao povo de Iguatu, através dos incontáveis amigos que Evaldo cultivou durante sua caminhada, o lançamento de um “songbook” com suas músicas, inclusive garimpando preciosidades pouco conhecidas ou que se perderam nas brumas do tempo.

Evaldo e Jair compuseram joias musicais em, praticamente, todos os gêneros, demonstrando toda a sua versatilidade em inúmeros sambas, tangos, guarânias, baladas, fados, modinhas, serestas,  etc., não se restringindo ao bolero e ao samba-canção, tônica do repertório que, a partir da 1ª metade dos anos 60, consagraria o iniciante Altemar Dutra, com a formidável dupla, para surpresa da crítica mais elitizada, incursionando com desenvoltura até pela Bossa Nova, movimento então dominante, com “Samba Sem Pim-Pom” e “Garota Moderna”, “hit” celebrizado na ginga de Wilson Simonal.

Altemar tornou-se o principal intérprete de Evaldo & Jair, de quem gravaria mais de 100 canções, sempre com 4 ou 5 inéditas por álbum, mas outras lendas da MPB passaram a priorizar a inclusão, em seus discos, de músicas que se incorporaram definitivamente à MPB, destacando-se o Professor, que, em 1965, lançaria o célebre “Cauby Peixoto Interpreta Evaldo Gouveia e Jair Amorim”, uma raridade avidamente disputada por colecionadores nos sebos do Rio e de São Paulo.

O próprio Evaldo, em 1975, estimulado pelo parceiro de anos seguidos de trabalho, deixaria sua marca de ótimo intérprete, brindando-nos com o álbum “Evaldo Gouveia Interpreta Evaldo Gouveia e Jair Amorim”, igualmente raríssimo, com a inserção de faixas inéditas, como “Deixa Prá Lá”, “Além de Nós” e “Canto de Amor ao Rio” (homenagem de Evaldo e Jair ao Rio de Janeiro), adicionadas aos clássicos em voga, do quilate de “O Conde” e “Tango Prá Tereza”, personalizados com maestria.

Adentrando aos gêneros samba e samba-enredo, o flerte de Evaldo e Jair com a Portela começou na 2ª metade dos anos 60, por meio de algumas composições ainda tímidas e acanhadas, até o namoro consolidar-se em 1969, com o “Conde”, que explodiu na mídia radiofônica e televisiva do Oiapoque ao Chuí na voz de Jair Rodrigues, balançando os corações dos torcedores da Águia de Madureira.

Ouso dizer que, se “O Conde” tivesse a batida e os acordes típicos de um samba-enredo, certamente seria recepcionado pela Portela como um dos mais fortes candidatos da Escola ao Carnaval, embora a declaração de amor de Evaldo e Jair no samba calassem fundo na alma portelense e eles, enfim, lograssem obter o imprescindível “sinal verde” para frequentar mais amiúde o Portelão e as rodas dos bambas da Velha Guarda, nada obstante gerando uma certa ciumeira naquela tradicional ala.

A consagração de Evaldo Gouveia e Jair Amorim no Carnaval carioca viria alguns anos depois, quando o Furacão “Pizindin”, belíssima homenagem a Mestre Pixinguinha, sacudiu as conservadoras raízes portelenses, tornando-se um fenômeno nacional, pois ganhou as ruas do Rio e, por extensão de todo o país, a ponto de vencer, com galhardia, uma disputa duríssima com sambas de compositores da Velha Guarda da Portela, ungindo-se como o samba-enredo da Escola para o Carnaval de 1974.

“Pizindin” tornou-se uma unanimidade, mas desencadeou um racha na Portela, pois os bambas da Velha Guarda não se conformaram com a ousadia do “rapaz do Ceará” e do “compositor de boleros” do Espírito Santo, que, na esteira de “O Conde”, sublimavam agora seu amor pela Escola, chegando ao ápice de suas carreiras, com a histórica vitória do samba que contagiou a nação portelense.

São passagens marcantes que ora trago à baila para ilustrar o depoimento deste cratense que, ainda bastante jovem, ginasiano do lendário Colégio Diocesano do Crato, acolhedor de tantos estudantes de Iguatu, aprendeu a admirar Evaldo Gouveia na voz de Altemar Dutra, tornando-se fã incondicional desse inesquecível mestre da canção em Fortaleza, perdurando até hoje como um garimpeiro das músicas do ídolo que dignificou e elevou ao mais alto panteão da glória a paixão pelo torrão natal.

Não tenho dúvidas de que Evaldo foi recebido com flores e palmas no Céu, com um tapete vermelho bordado por suas canções sendo estendido por Altemar, Cauby, Ângela, Carlos José, Jair Rodrigues, Anísio Silva, Epaminondas e Mário Alves, o arcanjo Jair Amorim à frente para aplaudir aquele que sorri “trazendo lágrimas no olhar”, pois “merece uma homenagem quem tem forças prá cantar”.

O Conde chegou! Viva o Conde! A benção, Evaldo Gouveia!

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