DEVANEIOS – Platão e sua “farmácia”

11/05/2019

Curiosíssima e plena de sentidos é a definição de linguagem para Platão. Phármakon. Substantivo que apresenta três significados: remédio, veneno ou cosmético. A própria palavra deveria trazer sua bula para nos orientar nesta abstração da língua grega. Em Roma dizia-se sermo. Claro e preciso étimo para designar o discurso ou linguagem.

Mas voltemos ao aluno de Sócrates. A linguagem realmente consegue expressar as ideias quanto aos seres e às coisas? Essa visceral questão sobre filosofia da linguagem jamais foi inteiramente respondida. Como sabemos, Platão não punha muito crédito no mundo “sensível”, para ele inferior e mera cópia do mundo verdadeiro, o “inteligível”. Assim sendo, como poderia a linguagem, instrumento constituído dominantemente por parte dos sentidos, exprimir realidades ideais?

Os linguistas estão completamente equivocados. O signo não é arbitrário. As palavras, quando usadas segundo o princípio do mot juste (Flaubert), têm poder, evocam realidades absolutas e precisas. Nas sociedades e culturas da Antiguidade os vocábulos tinham mágicas potencialidades. Participavam dos ritos, dos encantamentos, das invocações e das curas. Mas somente a palavra única, específica para cada caso ou situação.

Assim podemos propor uma exegese aplicada ao discurso a partir da tríplice nomenclatura platônica. A palavra é “remedium” quando segue a precisão vocabular clássica, o cânon da língua. A palavra é “venenum” quando viola tal norma; quando se afasta do poder expressivo que cada língua possui. Surge então o “error” (erro), que é tão somente a confissão da não capacidade linguística para exprimir ideias e nomear seres e coisas. A palavra é ainda “cosmetica”, “medicamenta”, significando tal pendor simplesmente o uso dos tropos, figuras de linguagem. “Lumina orationis” (Cícero). Se em demasia for tal uso, ocorrência Maneirista, encaminha-se para o duvidoso gosto, a inexpressividade. Se com parcimônia, dá-se a elegância no trato vernacular.

Platão seguramente abriu o caminho para a busca da perfeita estesia da linguagem. A principal função da língua. Comunicar-se? Isso é pouco; é instintivo e até os rudes animais podem fazê-lo. Produzir beleza, só o espírito humano dotado de razão é capaz. Entretanto, só o fará se seguir o cânon, a linguagem como remédio.

Evitemos, bom leitor, os venenos e os cosméticos.

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

MAIS Notícias
ANTIGOS ADÁGIOS LUSITANOS
ANTIGOS ADÁGIOS LUSITANOS

“Nunc mitibus quaero mutare tristia” Horatius   É cousa conteste que a obra do disserto Pe. Manuel Bernardes (1644-1710) configura-se como um dos ápices do Seiscentismo português e da própria essência vernacular. Autor de forte índole mística, consagrou toda a vida ao...

Recordatio Animae
Recordatio Animae

     “... E eu sinto-me desterrado de corações, sozinho na noite de mim próprio, chorando como um mendigo o silêncio fechado de todas as portas.” Bernardo Soares   Este poente de sonho eu já vi; As tardes dolentes e o luar... As velhas arcadas mirando o mar......

QUIDVE PETUNT ANIMAE?
QUIDVE PETUNT ANIMAE?

(Virgilius)   Lux! E jamais voltar ao sono escuro À sede da matéria... Ser uma sombra etérea, Ser o infinito o único futuro!   Não lembrar! Ter a inocência da água; Ser pedra eternamente! Tal qual o mar onde o rio deságua Em música silente......

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *