Num momento em que se usam eufemismos os mais cínicos para edulcorar o que faz o Estado sionista a milhares de civis, mulheres e crianças, perversamente destroçados na Faixa de Gaza, a pretexto de conter o terrorismo do Hamas, só mesmo a arte pode deitar luz sobre o que, em essência, é a mais definitiva ação de limpeza étnica levada a efeito por Israel.
Não há uma guerra contra o Hamas, forma desonesta de tentar esconder o que de fato vem ocorrendo na Faixa de Gaza. Não há uma (re)ação de autodefesa, tampouco o enfrentamento de forças equivalentes em motivações e verdades. O que existe é o confronto entre um Estado racista e colonial contra um povo que luta por libertação, direito à terra em que vive, à cultura pela qual se conduz sua sociedade, pela preservação de sua identidade e sua língua.
A solução, todos sabem, mesmo aqueles que estão empenhados em justificar o injustificável, é a formação do Estado palestino, com o reconhecimento de seus direitos como território autônomo e verdadeiramente livre.
Não há outro caminho, não existem outras alternativas de ação.
Contudo, não é esta a minha matéria, não é este o campo de debate a que tenho me dedicado diuturnamente, mas não há silêncio honesto em se tratando do massacre a que estão submetidos os palestinos na Faixa de Gaza, fruto da ganância expansionista de Israel e da política de extrema direita do governo de Netanyahu.
Mas é sobre arte que gostaria de falar, e o farei aqui.
Disponível na Netflix o delicadíssimo “A 200 metros”, filme que concorreu ao Oscar 2020 como representante da Jordânia. A trama gira em torno das dificuldades de um pai para ter acesso ao filho, hospitalizado em decorrência de um atropelamento.
Mustafa (interpretado à perfeição por Ali Suliman), como se chama, vive na Cisjordânia, a mulher e os filhos em Israel. Suas casas estão separadas, pelo muro, a uma distância de 200 metros. É sob essa atmosfera emocional, na qual se alternam momentos de ternura e tensão claustrofóbica, que o cineasta estreante Ameen Nayfeh, que também assina o roteiro, explora esteticamente a matéria com que realizou uma pequena obra-prima do cinema contemporâneo. Trata-se, pois, de um filme temático, com sutis intervenções críticas sobre a realidade vivida pelos palestinos na fronteira com Israel. Essa sutileza, a revelar a sensibilidade do artista estreante, confere ao filme, enquanto obra de arte, uma dignidade que se sobrepõe a qualquer intenção meramente política.
O filme, assim, transcorre com equilíbrio e ritmo adequado, e as soluções de linguagem encontradas pelo diretor extrapolam o corriqueiro em narrativas do gênero. Tudo é muito simples, mas nunca simplório, e a beleza do filme se dá a ver sem que a sua densidade dramática perca destaque.
Se é verdade que a motivação central da obra é o problema geopolítico, que traz à pauta uma discussão muitíssimo atual, não é menos verdade o que se passa em termos artísticos diante do espectador: as imagens são compostas com apuro visual tamanho, que mesmo as sequências mais violentas observam critérios formais elegantes — os movimentos e angulações de câmera são perfeitos, o quadro bem definido, e os recursos de iluminação e som usados em absoluta sintonia com o que ocorre às personagens.
O que poderia ser um filme “panfletário”, assumidamente enfático em apoio à causa palestina, é antes uma obra construída em bases narrativas de elevado padrão estético, e o resultado final da produção agrada mesmo àqueles que veem em perspectiva tortuosa o que vem acontecendo hoje no Oriente Médio.
As sequências mais tensas, pontuadas pelos conflitos culturais entre as personagens envolvidas, são exemplo da fina compreensão do que é essencial do ponto de vista cinematográfico, lembrando em muito os belos filmes de Abbas Kiarostami: passam-se dentro de uma vã, e é nesse espaço exíguo que se depara com a discussão mais aguda dos problemas regionais. Não é muito dizer que a essa altura da narração fílmica a obra ganha intensidade dramática, e os conflitos entre israelenses e palestinos colocam-se com clareza aos olhos do espectador. Mas são as estratégias narrativas que ditam o discurso fílmico, dando realce no percurso da fábula ao que existe de simbólico e sugestivo: a câmera desenha o perfil psicológico de cada um. Não há lágrimas, emoções gratuitas, sentimentalismos vãos. Sob medida, o que se vê é a denúncia do lado monstruoso do mundo, e o muro da incomunicabilidade entre os homens.
Ao fim e ao cabo, assistir ao filme de estreia de Ameen Nayfeh é uma experiência agradável, ainda que o seu leitmotiv sustente-se em um tema historicamente pesado e por diferentes perspectivas inquietante, sobretudo agora, quando está em curso um confronto que prende, tortura e mata com requintes de crueldade poucas vezes constatados ao longo da grande História.
Não deixe de ver.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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