Sempre fui avesso a mudanças. A ideia de estar sempre reorganizando a vida pode até soar interessante dentro de uma cultura que valoriza o novo acima de tudo, mas a mim sempre pareceu superficial e desproporcional.
Dito isso, faço agora uma digressão pessoal, íntima, por assim dizer: uma das coisas que mais detesto em mudanças – refiro-me especificamente às mudanças de endereço etc. – é a perda de livros. Não acredito em perda de livro acidental. Não se trata da velha história do cachorro que caiu do caminhão da mudança.
Um livro pode até ser um objeto relativamente pequeno, e até descartável para alguns. Mas não chega a ser indiferente como um broche, uma agulha, ou um pedaço desmembrado de outro objeto que para nada mais serve. Cada livro possui uma história. Mesmo o livro em frangalhos, rasgado, moído pela ação inclemente do tempo.
Na minha primeira mudança, de Orós para Iguatu, fui sábio e só trouxe os livros que considerava essenciais. Alguns livros de poesia brasileira; uma bíblia de estudo; alguma coisa de filosofia que estudava à época, sobretudo as obras de Nietzsche e Schopenhauer. O restante – livros variados – deixei na minha antiga cidade.
E mesmo assim perdi livros. Como? Perguntará o curioso leitor ocasional. É que sem a minha presença, o meu zelo quase religioso por eles, alguns foram desaparecendo. De modo que tenho certeza que sumiram sem a minha autorização.
Vez por outra pergunto aos meus familiares: e o livro assim e assim, em capa dura, cor preta, título em espanhol e tal, está aí? Não está mais. Pergunto se alguém o pegou emprestado. Nova negativa. É um mistério.
Já nas outras mudanças perdi a granel. Fosse pela desatenção do pessoal da mudança, fosse pela minha própria correria, eles iam desaparecendo. Coube então a mim entender, com o passar dos anos, que assim como encontrar certas obras raras é uma arte, perdê-las também pode vir a ser. Explico.
Há um poema brega, escrito por certo ex-poeta brega aqui de Iguatu, que começa com a seguinte frase: “Se você a ama, deixe-a ir”. Não é que fiz às pazes com a polêmica, mas é mais fácil abrir mão de um amor que era para ser e que não foi do que abrir mão de certos livros que nos acompanham em todos os momentos, sobretudo nas noites escuras da alma, naquele lugar onde não há amigos nem irmãos, só o desamparo.
Quando afirmei acima que perder livros pode ser uma arte, quis dizer que não importa tanto os volumes que você possui, afinal poucos livros permanecerão conosco até o fim.
Hoje, por exemplo, eu poderia listar uns 50 livros que não abro mão; mas amanhã eles podem vir a somar 30, depois de amanhã 20, e talvez, ao final, permaneçam três, para citar São Paulo na carta aos coríntios.
A arte de perder livros é a arte do desapego. É a mesma que vale quanto ao corpo: é preciso aceitar que não temos mais o mesmo vigor e entusiasmo que tínhamos aos 18 anos. E desapego, aqui, não se refere a moda de desapegar no afã de ganhar algo em troca. O referencial é outro: desapego é síntese, reduzir ao essencial.
Também não se trata de aceitar nossa própria desorganização ou desatenção. Livros sempre serão objeto de poucos, e o amor por eles é somente para os raros.
Entretanto, entendo cada vez mais o que quis dizer Nelson Rodrigues, quando perguntado sobre o que um jovem escritor deveria ler. Sua resposta é lendária:
– Dostoiévski.
– Mas fora ele, qual outro autor indica?
– Dostoiévski.
E não só por que o russo é um gigante, e sim porque no fim tudo se reduz à nossa essência.
Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.
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