Beira a estupidez o que certos colunistas, dominados pelo fundamentalismo de direita, têm publicado sobre a cineasta Petra Costa nos últimos dias. Na edição de hoje da Folha, por exemplo, é ridículo o que afirma sobre a jovem cineasta o jornalista Roberto Dias. Seu texto, contudo, é tão desprovido de substância analítica, tão ignorante em termos cinematográficos e tão explícito em suas intenções ideológicas contra Petra, que prefiro passar ao largo do que professa no seu artigo Uma câmera em vertigem, mal e mal interpretando efeitos estéticos do documentário como a refletir o despreparo da diretora no tratamento formal dispensado a este e outros trabalhos de sua autoria.
Como se trata de uma realizadora ainda desconhecida do grande público, sobre a qual me têm com frequência indagado, é a ela que gostaria de dedicar aqui algumas palavras.
Petra Costa, que já fizera Olhos de ressaca, em 2009, um curta-metragem sobre seus avós, é a talentosa diretora do belíssimo Elena (2012), que, exemplarmente bem realizado do ponto de vista fílmico, muitas vezes utilizei em versão DVD durante minhas aulas de estética do cinema, na faculdade. É sobre este seu primeiro longa-metragem que farei aqui algumas ponderações, deixando Democracia em vertigem para a próxima coluna.
O filme, para aqueles que não o viram, é um depoimento emocionado de Petra Costa sobre a irmã Elena Andrade, que suicidou quando a jovem cineasta tinha sete anos. Natural, pois, que o filme se reporte ao tema com significativa dosagem de emoção, uma forma poética com que Petra exterioriza seus sentimentos mal resolvidos em face da perda trágica de uma irmã a quem via como a outra grande referência além dos pais, vítimas das perseguições políticas durante os anos de chumbo.
No entanto, atenta ao que é próprio dos grandes artistas – ainda que o filme tenha nascido de um conflito pessoal -, Petra Costa amplifica sua força estética, tornando-a uma obra de arte de alcance universal. É, assim, um filme sobre a dor da perda, da angústia e depressão que resultam dessa experiência, nomeadamente para aqueles que, como ocorreu a Petra Costa, ainda se acham numa etapa de formação de suas vidas quando isso acontece.
É impagável, sob este aspecto, uma fala da narradora (a própria Petra Costa) a uma dada altura do documentário: “Queriam que eu te esquecesse”, diz Petra, com um tom de voz carregado de emoções subjetivas que se tornaram mesmo uma marca de sua ainda incipiente, mas irretocavelmente bela, filmografia, a exemplo do que se pode constatar em Democracia e vertigem, perversa e equivocadamente comentado pelo colunista da Folha de S. Paulo.
Falta alcance analítico para perceber que tais recursos, na linha do que faz com a câmera em algumas sequências em Democracia e vertigem, além de legítimo do ponto de vista ético, é um elemento constitutivo das estratégias narrativas adotadas por Petra. Não se trata, pois, de um documentário de viés clássico, mas um filme em que inexistem fronteiras entre o documental e o discursivo, o que potencializa sua vitalidade poética e seu caráter sintonizador.
Quanto a Elena, mais que um depoimento sobre a irmã morta, o filme nos fala da dor que, cedo ou tarde, perpassa a vida de qualquer um, e que se pode partilhar com a artista quando se tem em mente que arte é verossimilhança, ‘mentira’ capaz de revelar a mais funda verdade, como quis Aristóteles.
A narrativa é toda ela construída com o que restou de e sobre Elena Andrade – fitas-cassete, fotos, imagens criadas pelo uso inventivo e competente da câmera, como numa cena do filme em que Petra aparece caminhando sobre uma ponte em Nova York, intencionalmente desfocada, como na composição de uma tela impressionista. A essa altura do desfile fílmico, ouve-se a voz de Petra: “Me vejo tanto em suas palavras, que começo a me perder em você”.
A voz de Petra é doce, suave, delicada, como a revelar, também, a boa atriz que é – e o filme cresce como construto artístico e como depoimento pessoal, mas, a esse tempo, a saudade e a angústia da narradora é em igual medida a de todos nós.
A arte, sabe-se, entre outras coisas “consiste em um homem (uma mulher no caso) transmitir conscientemente a outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que vivenciou, e os outros serem contaminados desses sentimentos e também os experimentar”, já dizia Tolstói, em livro conhecido sobre o assunto.
Ao direcionar ao filme Democracia e vertigem o seu olhar maldoso, e desprovido de conhecimento sobre o que é a arte, o jornalista da Folha arvora-se de arauto da verdade sobre o que ocorreu no Brasil nesses últimos anos, incorre num erro grosseiro de crítica cinematográfica e fecha os olhos para o que mais dignifica a atividade do artista: ser livre e expressar sua visão de mundo em absoluta sintonia com suas convicções políticas.
No campo estético, sabe-se, é delicado o fio que separa o documento da ficção. Um dos nomes mais promissores do documentário nacional, Petra Costa faz arte, não jornalismo, embora mantenha-se em Democracia e vertigem com inatacável equilíbrio, em que pese assumir-se politicamente de forma honesta e transparente. Mas, sobre isso, já o dissemos, falaremos depois.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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