A bola cai mais uma vez no quintal do senil aleijado. Era um Casmurro, do Machado; sem companhia e sem sequer, neste caso, perspectiva de traição por uma bela amada – que este nunca possuiu. As crianças do bairro o chamavam ‘‘O Moribundo’’, pois, como o nome sugere, presumiam que o velho não passaria daquele ano, posto o desgaste instaurado em seu corpo e alma. ‘‘Assim como em todos os anos, o ancião ainda insistia em respirar’’, dizia a meninada.
A senectude é uma praga que só quem morre cedo, tem o (des)prazer de evitá-la. O ancião vivia só e sem vizinhos. Sua casa isolada em um terreno baldio era a única conquista de sua longa vida. Sem filhos, o decrépito passava seus dias trancafiados entre os vãos de pouca luz da sua residência. Mas, como mencionei, a bola caiu e, ao contrário das outras vezes, os meninos pretendiam recuperar essa sua derradeira bola.
Como toda figura insólita, o velho passava a impressão de ser uma espécie de feiticeiro, de duende ou qualquer ser fantasioso – típico das histórias mitológicas. Apesar de não possuir ambas as pernas, o ancião dispensava o uso de cadeira de rodas; o que lhe dava uma aparência estranha enquanto caminhava, equilibrando-se sobre os joelhos. Tinha ‘‘capuchos’’ alvos e ralos espalhados timidamente sobre a cabeça cheia de manchas amarronzadas.
O menino cai do muro quando o vê sem camisa, onde seus ossos pontudos pareciam um par de chifres: um em cada lado do ombro da criatura bizarra. O jovem não tem tempo de correr ante a visão que o paralisou. O velho o alcança correndo por sobre seus joelhos, numa velocidade invejável. Agarra-o pelo braço e puxa-o para dentro do casebre esmo, sem vizinhos ou qualquer coisa que lembrasse gente.
O velho entrega a bola que caíra no quintal e todas as outras oito bolas caídas nos últimos três anos. Deu-lhe chá de erva cidreira e pediu-lhe que ficasse um pouco mais para que pudesse, por fim, falar com alguém que não fosse ele próprio. O menino, agora mais tranquilo, já não temia pelo aspecto sinistro da anomalia do senhor nonagenário. Riu até algumas vezes, como quando o decrépito queimou a ponta dos dedos ao preparar o chá e quando tentou pegar um copo que, caindo, quebrou-se por completo, espalhando cacos por todo o diminuto vão.
– Em um dia distante, acredite, já fui tão belo quanto a ti, garoto matreiro e audacioso! – Disse o velho. – Já andei de bicicleta e joguei bola. Nunca tive amores que não fosse a minha mãe e a minha falecida cadela Judith. – Seguiu desabafando.
– Hoje, nada tenho que não seja repúdio por parte de todos pelo meu aspecto e pela minha vida isolada – Esta, que é efeito, não causa da minha misantropia – Desabafou o velho.
– Mas, senhor… – O menino tenta argumentar, mas é interrompido.
– Cale-se! Não estou chateado com o mundo. O aceito, meu caro jovem peralta!
– Leve as suas bolas de futebol, um quadro feito pela minha própria mão canhota, um abraço desta triste e repugnante criatura e diga ao mundo, que me odeie menos… Garanto não durar muito. Feneço antes dos 100. Garanto! Garanto!
Aos noventa e nove, morre o velho, de causas naturais. O garoto – agora rapaz – foi o único presente no velório. Em seu caixão, deposita um bilhete com a seguinte frase: ‘‘Em um dia distante, quero ser como você, meu ranzinza-pintor favorito. Suas mãos calejadas prepararam o melhor chá que já provei. E a sua conversa foi a mais agradável dentre todas. Um dia distante, quero a sua fisionomia e o seu coração! Vá em paz…’’,
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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