A bossa nova e outras bossas

07/09/2024

A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou na semana que termina um projeto de lei que “torna” a bossa nova patrimônio cultural da cidade. Mera formalização do que já era uma realidade.

Nascida no Rio, onde residiram seus mais legítimos representantes, a bossa nova ganharia o mundo como um estilo musical essencialmente brasileiro, ainda que suas raízes estéticas estejam reconhecidamente ligadas ao jazz americano.

“Bossa” era como se definia um tipo de virtuosismo recorrente entre os sambistas do Rio de Janeiro nos anos 30, mas a expressão bossa nova viria muitos anos depois, mais precisamente em 1958, quando um grupo de rapazes do Rio de Janeiro se apresentou no Grupo Universitário Hebraico Brasileiro tocando e cantando sambas ditos “modernos”.

A fim de despertar a curiosidade do público, o estudante Moisés Fuks, organizador do evento, escreveu a giz, na entrada do auditório: “Sylvia Telles e um grupo bossa nova apresentando sambas modernos”.

Estava lançada a sorte de um movimento que logo ganharia a simpatia da classe média alta do Rio de Janeiro, segmento social a que pertenciam os grandes nomes do novo jeito de tocar e cantar denominado a partir de então “bossa nova”.

Se as bases rítmicas do estilo remontavam ao fim dos anos 40 e inícios dos anos 50, com músicos, cantores e compositores da estatura de Mario Reis e Carmen Miranda, é notório o fato de que o tom mais sincopado e suave de Cyro Monteiro e Geraldo Pereira, a que se somavam as harmonias delicadas de Custódio Mesquita e José Maria de Abreu, apontavam para buscas de inovação condizentes com o que viria ocorrer na virada dos anos 50, com Dick Farney, Lúcio Alves, Luiz Bonfá e, com maior destaque em termos de enquadramento estético, Tom Jobim, Carlos Lyra, João Donato, Johnny Alf, Billy Blanco, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, João Gilberto e Nara Leão, entre outros.

Mas é arriscado dizer a quem se deve atribuir, pois, papel de maior realce autoral do “movimento”, muito embora seja recorrente a afirmação de que foi Johnny Alf o primeiro intérprete do que é próprio da bossa nova: um jeito minimalista, confidente, suave, delicado, de tocar e cantar samba.

Não se pode negar, contudo, que foi João Gilberto o mais legítimo, autêntico e típico “bossanovista”, a quem se deve a batida inconfundível do violão, o tom intimista da interpretação, o fraseado doce, a afinação rigorosamente trabalhada que fariam dele o mais prestigiado artista brasileiro na Europa e nos Estados Unidos.

De perfil psicológico complicado e profundamente contraditório, beirando um exotismo doentio e arrogante, capaz de excentricidades inacreditáveis, João Gilberto é mesmo “a cara” da bossa nova. Não é muito dizer, portanto, que ele, Tom Jobim e Vinicius de Moraes compõem a santa trindade do que, agora por força de lei, tornou-se patrimônio artístico e cultural da cidade do Rio de Janeiro.

Por último, em observação aos limites de espaço da coluna, urge ressaltar que bossa nova é uma expressão de amplo alcance estético, dentro de cuja classificação é possível se fazerem presentes outras tendências, umas mais, outras menos, identificadas com a genealogia de um estilo invariavelmente marcado pelo fraseado natural e sem afetação ou teatralidade à maneira de Bing Crosby.

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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