Leitora faz-me uma indagação no mínimo curiosa: – “Adoro acompanhar seus textos sobre literatura, mas gostaria que me indicasse livros menos complicados (sic), mais fáceis. O que você acha de Martha Medeiros?” Como é isto mesmo que esta coluna se propõe, sem no entanto perder de vista o que se pode definir como boa literatura, estimular o interesse e o hábito da leitura, tomo sua “curiosidade” como fio condutor da minha crônica de hoje. Vamos lá.
Começo por afirmar que Martha Medeiros não é uma escritora “menor”, em que pese o fato de ser uma autora lida por um público, digamos, mais popular, atribuindo-se ao termo o que penso ser a preocupação da leitora: apreciada ou aprovada por larga parcela da população, muito lida, atingindo elevados níveis de vendagem em livro.
Leio Martha Medeiros sempre que posso, li quase tudo de sua produção, suas crônicas em jornal e livros e pelo menos dois ou três dos seus cinco romances. O último inclusive, sobre o qual gostaria de escrever hoje. Sem incorrer em spoiler, prometo.
“A Claridade Lá Fora” (L&PM, 2020) narra a história de um casal de intelectuais, ela, tradutora, poliglota, formada na Sorbonne; ele, professor universitário – recolhidos ambos a um pequeno povoado na praia, em meio a livros e filmes. Esses os elementos com que Medeiros realiza uma pequena obra-prima da ficção contemporânea, sem deixar cair por terra o viço de uma prosa enxuta e elegante, muito embora assentada em bases estéticas simples e fáceis.
Ligia, a personagem central, vive ao lado do marido, Nuno, o desafio de tocar a vida num contexto social quase em nada condizente com os refinados gostos do casal, o que os condena a uma relação mais íntima e intensa em face da inexistência de pessoas com que possam socializar o dia a dia de suas vidas. Essa realidade, já por si desafiadora, agrava-se pelo imprevisível, e Ligia depara, então, com novas e perturbadoras necessidades: reaprender-se, descobrindo o lado obscuro de sua individualidade, reconstruindo-se num ambiente com que não se identifica, à procura de alternativas para se recompor como mulher num mundo pautado por profundas contradições.
O livro, como se vê, verticaliza-se em termos dramáticos, assumindo vieses psicológicos que lhe dão linhas de força inesperadas e envolventes, num ritmo narrativo que faz de sua leitura uma experiência estética a um só tempo agradável e gostosamente febril.
Em “A Claridade Lá Fora”, como nos romances anteriores, é notável a capacidade de Martha Medeiros para descrever e narrar reações humanas, os pequenos titubeios, as oscilações emocionais de suas personagens, o que faz de sua ficção mais que literatura em termos convencionais. Há muito de cinema em seus livros, isto é, as “cenas” são apresentadas ao leitor com requinte sensorial, como que a permitir-lhe a visualização precisa de gestos e trejeitos, e sobretudo os componentes psicológicos que as movem em diferentes situações dramáticas: “Desligou e continuou sentada na beira do sofá com o celular entre as mãos, as costas eretas como quem fosse levantar de imediato, mas manteve-se inerte por longos minutos, observando o nada demoradamente”.
Não à toa é que são recorrentes em seus textos referências cinematográficas. Neste romance, como nos anteriores, deparamo-nos com alusões a filmes de Almodóvar e Truffaut. Num livro de crônicas, volta-se exclusivamente para filmes de sua predileção.
Mas é a delicadeza no tratamento dos grandes conflitos humanos o que mais deve ser destacado em “A Claridade Lá Fora”: os frágeis alicerces das relações humanas, os medos, a sexualidade pulsante, os ressentimentos e rancores com que lidamos sempre que passa a paixão e o amor apenas revela-nos a sua face humana.
Não é preciso, cara leitora, ser difícil para ser boa literatura. Vá de Martha, que irá bem!
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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