A dama de preto

15/11/2019

Também conhecido como Beaubourg, o Centro Cultural Pompidou, ou simplesmente Centre Pompidou, é um dos lugares mais visitados da França. Zaira, Batista, Cleide e eu chegamos cedo, ávidos de explorar com a melhor atenção este espaço ocupado por alguns dos mais bem-sucedidos projetos culturais franceses de todos os tempos.

O prédio já impressiona pela excentricidade do seu projeto, com tubulações hidráulicas aparentes, o diálogo indisciplinado do ferro e do concreto, suas imensas escadas rolantes e os muitos elevadores panorâmicos. A biblioteca, que ocupa três pisos do edifício, possui um acervo gigantesco, os eventos ligados à arte são frequentes e quase sempre grandiosos, mas é o Musée National d’Art Moderne que mais impressiona. Pela primeira vez deparo com obras de Picasso, Matisse e do abstracionista americano Jackson Pollock, alguns dos artistas da modernidade que admiro mais.

Enquanto contemplo atentamente Tristeza do Rei, de Matisse, supostamente a sua última obra, aparece ao meu lado uma dama de preto, elegante e detentora de uma beleza ligeiramente exótica. Faz considerações inteligentes sobre a técnica do pintor modernista desde que foi diagnosticada a doença irreversível que o levaria à cadeira de rodas. Fala com desenvoltura, olhando-me vez e outra, sobre os recortes feitos com o auxílio de uma tesoura a partir de cartolinas previamente coloridas a guache, absolutamente diferentes de tudo o que fizeram outros grandes nomes da arte moderna, como Picasso e Kandinsky. E, finalmente, comenta a Tristeza com um domínio de análise em tudo convincente, original e profundo. Olha-me ainda uma vez, despede-se com o seu francês impecável, embora deixe claros sinais de que não nascera aqui, que apenas retorna a este centro pelo amor às artes, com que parece traçar seus rumos, tecer seus projetos, sua vida. Atravessa o salão com passadas firmes e serenas, como se fora uma garça negra, sequer olha para os lados, vai altiva e bela, até que desaparece por uma porta de saída.

Percebo que minha namorada acompanhara a rápida conversa com a dama de preto, que olhara, quem sabe de soslaio, querendo e não querendo dar a ver o seu desconforto. Dirijo-me a ela, que tão-somente responde ao que pergunto, indiferente, fria, ligeiramente ruborizada, como ficam os enciumados nessas horas.

Quando deixamos o Beaubourg, descendo pelas escadas rolantes, ainda carrego na memória todos os gestos, todas as palavras, a expressão do olhar, o sorriso indecifrável com que me dirigira a palavra, na eternidade daquele instante, a dama de preto. Esteta, crítica de arte, também ela artista? Fico a imaginar o que pode o inusitado, o imprevisível da vida. O que justifica que alguém que jamais verei novamente, de quem sequer sei o nome ou de onde veio, sequer se existe de fato, penetre tão fundo a alma, deixe no peito algo que não é saudade, mas que em tempo algum será esquecimento?

Vinte, vinte e poucos anos depois, voltando àquele lugar, ainda me perseguia na lembrança essa mulher que talvez nunca tenha existido, mas que consigo ver, rever, ouvir, sentir, quase tocar, com sua voz doce, com suas mãos expressivas, com seu olhar enigmático, com as mesmas passadas firmes e elegantes, até desaparecer outra vez…

Ao chegar à praça em frente ao Centre Pompidou, onde se veem artistas em plena execução de suas obras, caminho em direção ao Atelier Brancusi, bela reconstituição da oficina do artista plástico romeno Constantin Brancusi. Desta vez, estou só. Vem-me uma nostalgia das pessoas com quem estive aqui alguns anos antes. Lembro de Cleide, de Zaira, do jovem e talentoso Batista. E – inexplicável! -, a dama de preto.

É quase noite, tomo o rumo de uma estação de metrô e cruzo os braços numa tentativa de me proteger do frio, que agora parece me cortar o corpo. E a alma.

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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