“Let us go and make our visit”
S. Eliot
O professor Arnoldo Cruz tem cinquenta e dois anos. Há mais de vinte é doutor em Literatura Brasileira e Portuguesa. Ensina, já quase em via de se aposentar, numas das principais universidades do país. Está agora sentado em sua confortável poltrona no avião para Lisboa, voo 178, às duas horas da manhã. Vai proferir palestras num Centro Cultural e lançar um livro sobre crítica literária. Não consegue dormir e pensa na vida…
Na verdade, pensa no trabalho. Revisa mentalmente o que vai dizer nas comunicações. Sua existência pessoal foi sempre insípida. O trabalho sempre foi tudo. Arnoldo é extremamente cerebral, equilibrado e segue à risca ditames e teorias que aprendeu. Apenas as solidificou com o tempo. Para ele a palavra de renomados críticos que leu, de professores que teve é lei absoluta. É seu dever acadêmico defendê-los.
Arnoldo chega a ser intransigente na defesa de certos pontos. Verdades dogmáticas para ele. A autonomia do texto, por exemplo. O eu lírico jamais deve ser confundido com o eu biográfico. O homem não importa; somente o texto como uma realidade virtual, abstrata. A literatura, sob este ângulo, é uma grande mentira. Pura ficção. Suprarrealidade absoluta. “O poeta é um fingidor”, ensinou Fernando Pessoa.
Romeu Paiva, um colega seu na universidade, pensa totalmente diferente. Quantas discussões acaloradas têm! Quantas brigas! O oponente lembra a identidade vida e obra quanto aos Românticos. Tenta convencer Arnoldo sobre casos como o de Rimbaud, Baudelaire, Augusto dos Anjos, nos quais as tragédias pessoais influíram e até decidiram os rumos de suas obras. Mas o teimoso professor Arnoldo lembra-lhe Skakespeare, Fernando Pessoa, a impessoalidade dos Realistas, entre outros “cavalos de batalha” para assegurar o seu lado na contenda. “O homem não importa. Somente a obra. O eu lírico é definitivo”, vocifera fechando os punhos.
Assim a pensar Arnoldo adormeceu ainda no avião. Foi acordado pelo anúncio da chegada a Lisboa. Desnecessário dizer que sua estada na capital lusitana foi altamente proveitosa. Brilhantes e festejadas as palestras. Muito bem acolhido pela crítica o livro que lançou. As ideias acadêmicas defendidas por ele eram as da moda. Todos o aplaudiram.
Foram apenas três dias. Palestras, autógrafos, conversas acadêmicas e pouco descanso. Sequer houve tempo para visitar lugares históricos ou até mesmo livrarias. Tudo muito às pressas. Agora, no salão do hotel, no centro da velha cidade, aguardava a hora do voo de retorno a casa. Estava sozinho. Todas as cordiais despedidas tinham sido feitas. Mas faltavam quatro horas ainda para o momento de dirigir-se ao aeroporto. Arnoldo tinha um volume de versos de Fernando Pessoa e o relia. Mas, passados vinte minutos, a leitura não o satisfez. Estava agitado e ansioso. Algo o perturbava. Decidiu então sair e andar pela cidade. Caminhar e pensar é sempre bom.
Talvez tenha andado dois quarteirões; não mais. Estava diante do antigo prédio, ainda em uso, da Santa Casa, um conhecido hospital de Lisboa. Muitos artistas terminaram seus dias ali. Sobretudo os que morreram na pobreza. Arnoldo lembrava-se disto. Sem motivo razoável resolveu então entrar.
Parecia impelido por algo desconhecido. Entrar naquele hospital, àquelas horas, era uma atitude pouco razoável. Mas seguia, seguia atravessando corredores e salas… Então algo surpreendente ocorreu. Arnoldo pensou estar alucinando, perdendo os sentidos com o mundo real. À medida que andava, tudo à sua volta revestia-se de tons antigos. O hospital envelhecia, tomava os tons e as formas do passado. O angustiado professor só podia seguir, continuar sem saber para onde ou o que o esperava.
Subitamente então parou à porta de um dos quartos. Enfermeiras com roupas antigas assistiam um paciente que parecia estar à morte. Um homem de meia idade. Impossível! Impossível! Arnoldo não acreditava no que via. Era Fernando Pessoa no leito de morte, em seus últimos momentos. Aquele rosto sempre fora familiar a ele. Seu poeta de eleição. O responsável por suas certezas poéticas e críticas.
Arnoldo entrou no quarto quase a chorar. Aproximou-se do leito. Já não procurava entender aquela situação. Simplesmente contemplava. Fazia parte de um sonho?
O poeta então o fitou seriamente. Chamou-o mais para perto e disse:
– Achas mesmo que estou a fingir? Que finjo?
Ouvidas estas palavras, toda a cena se desfez como névoa que a luz do sol afasta. Arnoldo estava sentado numa poltrona no salão principal do hospital. Alguém o chamou:
– Senhor, senhor; o senhor está bem?
Tinha sido real. Tinha sido real. Uma espécie de onírica realidade totalmente inexplicável. Arnoldo nunca mais esqueceu aquela experiência. E depois daquilo, ao longo de sua vida, em suas aulas e palestras nunca mais teve certezas sobre o eu lírico!!!!
Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)
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