Quando critiquei a foto da capa da Folha de S. Paulo, há alguns dias, na qual o presidente Lula aparece por detrás de um vidro sugestivamente atingido por um projétil, e o gesto real de ajeitar sua gravata, em segundo plano, dá a entender uma contorção causada pela dor, numa técnica conhecida como “múltipla exposição”, recebi por e-mail um comentário que tomo a liberdade de publicar aqui, muito embora preservando sua autoria: “Leio com grande interesse seus textos, sobretudo quando escreve sobre cinema. Gosto do seu estilo e repasso todos eles para amigos, mas acho uma contradição criticar a montagem da jornalista com Lula. Afinal, o que é arte em fotografia?” (sic).
Teci ao remetente, logo que li a mensagem, algumas considerações que pretendi esclarecedoras, mas as retomo aqui como forma de alimentar o debate, o que, mesmo em tais circunstâncias, parece-me enriquecedor.
Começo por evidenciar que a técnica utilizada consiste em expor o mesmo fotograma (ou fotogramas diferentes) duas ou mais vezes, obtendo-se, com isso, uma fotografia carregada de sentidos estranhos a cada fotograma original visto isoladamente. Numa palavra: a múltipla exposição é uma montagem, o que pressupõe acréscimos ou subtrações de cunho estético e conteudístico.
Desde a publicação de “Pequena história da fotografia”, de Walter Benjamin, em 1931, e, principalmente, a partir do incontornável “Uma arte mediana: ensaios sobre os usos sociais da fotografia” (tenho em mãos o texto original, pois não traduzido ainda para o português), nos anos 1960, do filósofo Pierre Bourdieu, a discussão em torno da linguagem fotográfica ganhou novos relevos, e, por volta da década de 1970, aproximadamente, chegou-se à conclusão de que a fotografia ‘pode ser’ arte, isto é, dependendo do uso que se faz dos recursos de linguagem, das intenções por que se orienta seu autor, a fotografia pode gozar do status artístico.
É aqui, no entanto, que se abre o debate que nos interessa: Qual o papel do fotógrafo e da fotografia, por exemplo, nos campos da estética, da medicina legal e, como é o caso, do jornalismo? Recorro a exemplos.
Como arte, ocorre-me a sequência famosa do clássico “A Doce Vida”, de Federico Fellini, na Fontana de Trevi, quando a angulação de câmera sugere o memorável beijo entre Marcello Mastroianni e Anita Eckberg. Os dois, em realidade, não se beijaram, mas a insinuação de que o fizeram resulta artisticamente perfeita, condizendo com o componente ambíguo e contraditório da própria relação entre as duas personagens. Ponto para o diretor de fotografia Otello Martelli.
O registro fotográfico num laudo de medicina legal, pela seriedade da matéria que absorve, não comporta ambiguidades e deve, tanto quanto possível, “dizer” com exatidão como se deu o golpe desferido. A fotografia, aqui, é referencial, nunca um exercício de abstração ou algo que o valha.
No jornalismo, o objetivo a que se destina a fotografia é o de informar. Daí o chavão (discutível) de que “uma foto diz mais que mil palavras!”. O debate não é tão simples o quanto parece. Vejamos.
É aceitável do ponto de vista ético que se manipulem os recursos de linguagem a fim de passar para o receptor certos valores morais, ideológicos etc.? Uma angulação de câmera, um enquadramento, a luz, equivalem a uma fotomontagem, na linha do que fez a fotógrafa Gabriela Biló, na Folha de S. Paulo?
A discussão, pode-se ver, entra no campo acadêmico e envolve aspectos próprios da ética jornalística. Levantá-la, no espaço exíguo de uma coluna como esta, deve ser compreendido como uma provocação, nunca como um exame mais consistente do ponto de vista teórico.
Considero que, mesmo no jornalismo, existem diferenças importantes entre os procedimentos técnicos convencionais, como uma perspectiva, o aproveitamento do espaço físico e mesmo temporal do registro, a fim de que se obtenha um efeito de conteúdo desejado, e a manipulação propriamente dita de fotogramas com a intenção de se criar uma mensagem estranha ao fato registrado originariamente por eles.
Sob este aspecto, pois, por mais que sejam aceitáveis as intenções estéticas, o que é hoje recorrente mesmo numa reportagem para jornal ou revista, a fotografia ainda assim pertencerá, prioritariamente, ao campo da informação – e sua razão de ser deve visar ao registro tanto quanto possível condizente com a verdade factual em foco. Lançar mão de recursos de montagem, bem na linha do que fez a fotógrafa Gabriela Biló, desinforma, distorce, constitui um tipo de fraude e é, em sua materialidade, fake News. Ao fazê-lo, a profissional incorreu num erro e se prestou a interferir maldosamente sobre acontecimentos infames que já entraram para a História como um crime de proporções inimagináveis.
Sua foto na capa do mais importante jornal do país, por si só, exemplifica uma conivência que depõe contra sua brilhante carreira.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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