À mesa de um restaurante

31/08/2024

São de Chico Buarque os versos sublimes: “Oh pedaço de mim/Oh metade arrancada de mim/Leva o teu olhar/Que a saudade é o pior tormento/É pior que o esquecimento/É pior do que se entrevar//Oh pedaço de mim/Oh metade exilada de mim/Leva os teus sinais/Que a saudade dói como um barco/Que aos poucos descreve um arco/E evita atracar no cais”.

Dia desses, num restaurante, estando próximo à mesa em que conversava um casal, ouço a frase impiedosa: “Ela gosta de sofrer, se não já tinha esquecido esse homem.” Entre invasivo e inoportuno, falei com meus botões: “Aí está alguém que nunca sofreu por amor. É isso. Há dores que precisam ser curtidas, do contrário jamais desaparecerão.

A dor de um amor que termina é um desses casos. É como a dor das grandes perdas, como a dor pela morte do amigo querido, do parente próximo, é como o aperto no peito quando a cadeira de balanço – vazia – lembra o pai que se foi.

Rosa Monteiro, citando o escritor Alejandro Gándara, diz, em “A louca da casa”: “Amar apaixonadamente uma pessoa sem ser correspondido é que nem estar num barco e enjoar: você pensa que vai morrer, mas nos outros só provoca risadas.”

E, no entanto, a dor que se sente é insuportável.

Todo fim de relacionamento, sobretudo daqueles que tiveram vida longa, é desconcertante. E não adianta insistir dizendo que “foi melhor assim”, que “isso passa e logo vai aparecer alguém”, que “o importante é amizade que ficou” etc., palavras e expressões que nada dizem para quem desaba abismo abaixo naquele instante.

Não há separação tão equilibrada que atenda à vontade dos dois. Um lado vai sair machucado, invariavelmente. E só quem já passou por uma situação assim é capaz de entender a extensão e a profundidade dessa dor.

A propósito, sobre a dor da perda, li certa vez uma crônica de Nelson Rodrigues que é mesmo uma pérola. Está em “O óbvio ululante”, que tomo agora nas mãos. Nelson recebe o convite de um amigo para um almoço. Entre risadas, marcam o encontro para o dia seguinte. Ao meio-dia, estavam num restaurante. É aí que Nelson percebe que o amigo marcara o almoço como um pretexto para que o visse chorar, dilacerado de saudade do pai, que havia morrido. “Éramos amigos e fundamos naquela mesa a nossa solidão (a perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real!)”.

O amigo lhe abria o coração: “A morte de meu pai… Nunca me recuperei.” Nelson confessa ter sentido vontade de pedir-lhe: “Nem se recupere, nunca, nunca. Eis a nossa degradação, sofrer menos, menos, até esquecer”.

As palavras não valem quando se afoga na dor das grandes perdas. A companhia silenciosa, a mão sobre o ombro, o afago sincero, valem muito. As palavras, não. Ainda que nascidas das melhores intenções, não valem. Toda grande perda vem acompanhada da pior das sentenças: “Nunca mais!” E é em nome dessa sentença que é preciso curtir a dor, que só o tempo será capaz de curar.

Também de Nelson Rodrigues é a sábia afirmação: “Os psiquiatras e os psicanalistas deviam-se incumbir dos que esquecem fácil.” E lembra que estamos tão esquecidos de sofrer, que a dor nos parece, e cada vez mais, uma doença, quase uma loucura.

“Tão curto o amor e tão longo o esquecimento”, ecoa o verso de Neruda.

Vindas da mesa ao lado, no cair daquela tarde, as palavras que me chegam aos ouvidos me fazem recordar o poeta chileno.

E como ignoram o que é perder alguém que se ama…

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

 

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