Fiz oito anos na antevéspera do golpe de Estado de 64. Àquela época, os jornais não circulavam nas cidades do interior, não havia tevê e as notícias chegavam até nós através do rádio. Como morássemos ao lado de Aluísio Filgueiras, velho comunista, num tempo em que ser comunista nada tinha a ver com os rótulos de agora, entusiasta do governo deposto e homem de muita leitura, naturalmente aglutinavam-se nas proximidades de sua casa pequenos agrupamentos de pessoas com comentários sobre os acontecimentos em Brasília e no Rio de Janeiro. O meu hábito de ler, diga-se de passagem, começaria na biblioteca de Aluísio Filgueiras.
Ter oito anos em 1964, mesmo para os mais precoces, como eu, era ignorar qualquer assunto mais sério, como os fatos a que me reporto, en passant, à altura dessas minhas memórias.
Contando com o ingênuo e ostensivo apoio da sociedade brasileira, apreensiva com os rumos que diziam ir tomando o governo esquerdizante de João Goulart, e mediante a promessa de realizar eleições diretas no ano seguinte, os militares tomam o poder em 31 de março. Começava o mais cruel período de nossa História e o silêncio sentencioso da minha geração pelos próximos 21 anos.
Dez dias depois, frustradas as tentativas de resistência liderada no Rio Grande do Sul por Leonel Brizola, o Brasil assistia impotente à publicação do Ato Institucional Número Um e à perversa anulação dos direitos políticos de 102 brasileiros, entre os quais estava Luis Carlos Prestes.
Sobre Prestes, ainda menino, portanto, ouvi de Aluísio Filgueiras Filho, influenciado pela ideias do pai, as referências as mais exaltadas. Falava-nos do ‘Cavaleiro da Esperança’ com um entusiasmo e uma convicção contagiantes. Confesso que ali, na convivência com esta inteligência notável que era Aluísio Filho, nascia a minha primeira identificação com o ideário socialista, a minha utópica crença na possibilidade de um mundo de iguais, sem exploradores e explorados, numa realidade mais justa e mais humana.
Algum tempo depois, leria embevecido o panfletário O Cavaleiro da Esperança, de Jorge Amado e, já adulto, passaria a ler exaustivamente sobre o socialismo, sobre Guevara, Fidel Castro, Trótski, Lênin e o lendário venezuelano Simón Bolívar, de quem me impactavam as ideias de nações livres, independentes e, com a força poética do seu discurso, a união dos povos da América Latina.
Mas os russos, particularmente, eram os que mais me impressionavam. Na superficialidade própria da idade, tentava a custo vender o pensamento do marxismo entre os companheiros de minha geração, não raro assumindo o lado fantasioso da propaganda ideológica, usando barba longa, como Che, ou a barbicha de Trótski.
A propósito, ocorre-me lembrar uma passagem interessante, que ainda hoje é motivo de galhofa entre os amigos: era Carnaval e, na ingênua pretensão de dar a ver as minhas ideias ‘revolucionárias’, mesmo em folguedos de carnaval, simplesmente me fantasiei dele, Trótski, deixando a barba bem ao seu estilo. À entrada do clube, carregado de sonhos e cuba libre, deparo com a simpática acolhida do porteiro, Luiz, figura folclórica da cidade, que me achou a cara do Lindomar Castilho, um cantor brega da época. No dia seguinte, claro, ressabiado com a semelhança física indesejada, raspei a barba e decidi ir ao baile fantasiado de mim mesmo.
Já cursando o terceiro, quarto ano de faculdade, fui com amigos assistir a uma palestra de Luis Carlos Prestes, no pátio da faculdade de sociologia da Universidade Federal do Ceará. O Cavaleiro acabara de voltar ao Brasil contemplado com a anistia aos condenados políticos, em ato publicado em 1982. Ao final do evento, concorridíssimo, tive o privilégio de trocar algumas palavras com Prestes, boquiaberto, trêmulo e exultante diante do mito. Ouço ainda suas palavras, carregadas de poesia, de confiança no porvir e de inesperado afeto para com o jovem desconhecido que o abordava no inesperado do inesquecível instante.
Começava ali a militar nos meios estudantis. Simpatizava com o ‘Partidão’, como era chamado o PCB, e a figura de Prestes, a quem acabara de abraçar como se abraça um ídolo, Hércules-Quasímodo dentro do seu paletó amarfanhado e deselegante.
Mas foi ao PT, fundado três anos antes em São Paulo, que me filiaria pela primeira vez a uma agremiação partidária. Terminada a faculdade e as primeiras especializações, estabelecer-me-ia em Iguatu, seria eleito presidente do PT local e seu primeiro candidato a vereador a ganhar assento.
Viriam os primeiros contratempos, o cair da ficha de que o senso de justiça e correção, a coerência entre o pensar e o fazer, a percepção do que é essencial em face do aparente, essas e outras coisas mais, estão muitas vezes para além dos partidos, das fronteiras meramente ideológicas. Elas fazem parte do recheio interior dos homens, estão acima das cores e das cartilhas, são mais uma questão de sensibilidade e respeito aos valores fundamentais da existência. De noite, todos os gatos são pardos, diz a sabedoria popular.
Hoje, da altura dos meus 68 anos, continuo pensando politicamente mais à esquerda, ainda nutrindo o sonho de um mundo mais justo, mais livre, menos desigual. Da convivência com quadros partidários ditos progressistas, guardo algumas lembranças positivas e muitas desilusões.
De Iguatu, chegam-me as notícias de uma campanha em que antigos companheiros de luta descem à sujeira dos esgotos e das privadas. Antigo companheiro de militância, para ficar num exemplo, vejo o candidato Sá Vilarouca medir os outros com o metro pequeno do seu caráter, e armar ardis inescrupulosos no objetivo inconfessável de alçar voos para os quais se revela despreparado.
Triste fim de um Policarpo Quaresma ao avesso, desprovido de boas intenções e de utopias, cuspindo à direita e à esquerda a sua baba nojenta, como um lagarto peçonhento, matador de si mesmo na maldisfarçada pretensão de ser o que não é.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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