A Questão Bishop

21/12/2019

A escolha de Elizabeth Bishop como a principal homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no próximo ano, transformou-se na maior e mais tola polêmica intelectual dos últimos dias. O cerne da discussão, até onde sei, prende-se ao fato de que a escritora norte-americana teria se manifestado favoravelmente ao golpe militar de 1964 no Brasil. A questão, desimportante pelo tratamento que lhe tem sido dispensado nos meios de comunicação, envolve, inequivocamente, aspectos políticos; nada, contudo, que passe sequer superficialmente pela figura de Jair Bolsonaro, uma vez que qualquer pessoa medianamente informada sabe que o presidente jamais leu Bishop – quando menos, porque jamais terá lido alguma coisa para além das memórias do torturador Carlos Brilhante Ustra. Ah, mas se trata de uma escritora dos Estados Unidos, Tá Okay?! Bem, sob este aspecto… (Risos).

O fato é que, embora se trate de uma artista de inegáveis qualidades, não sem razão considerada um dos grandes nomes da poesia dos Estados Unidos no século 20, a opinião de Elizabeth Bishop sobre a política brasileira é algo tão irrelevante quanto seus comentários sobre o próprio país, que considerava atrasado, povoado por uma gente irritante e mal-educada, condenada a viver na periferia das grandes realizações humanas modernas.

Ao lado disso, o que mais reflete um absoluto preconceito em face da literatura produzida no Brasil, que mal conhecia porque mal conhecia a própria língua portuguesa, merecem destaque suas afirmações sobre a pobreza de nossa poesia. Sob este aspecto, aliás, se de alguma forma podem constituir um gesto de franqueza para com os nossos homens de letras, essas afirmações constituem um exemplo de grosseria desnecessária: nos quase 20 anos morando no Brasil, Bishop conviveu com muitos dos nossos maiores escritores, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira e Rachel de Queiroz, por exemplo.

Quanto a elogiar “a tranquilidade e beleza” com que o golpe militar se materializou, não se deve desprezar o fato de que Bishop foi amante da arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares, por sua vez amiga íntima de gente pouco afeita aos valores da democracia. Entre esses, destaque-se a figura de Carlos Lacerda, de quem Bishop recebeu as maiores lições sobre o Brasil dos anos 60 e 70 do século 20. Esperar o quê?

No que diz respeito à história de Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop, recomendo o belo livro Flores Raras e Banalíssimas (Editora Rocco, 1995), de Carmen L. Oliveira, escrito com prodígios de elegância e estilo. O livro, diga-se ainda, veio a ocupar, com méritos, um lugar de destaque na biografia de Elizabeth Bishop, tendo sido adaptado para o cinema no belíssimo Flores Raras (2013), de Bruno Barreto, sobre o qual publiquei à época, neste espaço, um breve artigo em que destaco sua notável beleza plástica e as interpretações irretocáveis de Glória Pires e Miranda Otto nos papeis de Lota e Bishop, respectivamente.

O certo é que, como escritora, a homenageada na Flip 2020 é nome importante da literatura norte-americana, embora pouco lida no Brasil. Assinando uma poesia que, entre nós, corresponderia mais ou menos à da segunda geração modernista, em que sobressaem poetas como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes, Elizabeth Bishop merece todo o respeito de quem for capaz de separar vida e obra, pois que esta é detentora de qualidades estéticas inegáveis. Não seria muito, por sinal, aproximá-la, ainda, de João Cabral de Mello Neto, cuja carpintaria poemática, a exemplo de Elizabeth Bishop, é assumidamente assentada numa fina percepção da “coisa circundante”, com raríssimos momentos de extração subjetivista. Algo no mínimo curioso para uma artista que viveu dramas pessoais profundos, não raro decorrentes do alcoolismo que a consumiu por inteiro aos 68 anos.

Por último, sem quaisquer pruridos xenofóbicos, fica a indagação: não haveria um nome brasileiro a ser homenageado na Flip 2020?

Em tempo: O ano termina sob o impacto do que todos já sabiam: A família Bolsonaro construiu uma história de corrupção e práticas de ilegalidades que vão da famosa “rachadinha” a financiamento de milicianos da mais perigosa estirpe. Os indícios, sabe-se, apontam para o que poderá desmascarar de uma vez por todas o clã mais poderoso do país hoje. Hoje, leia-se!

Aos leitores desta coluna, desejo um Feliz Natal!

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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