A ressaca do Carnaval

28/02/2020

Passou a folia e veio a ressaca. Assim como a ressaca do mar entrega, adormecidos como crianças, os corpos sem vida dos afogados, o final do Carnaval apresenta seus mortos, como se de tanta alegria dos vivos a morte afiasse mais a navalha para não sair perdendo.

A realidade cruel se repete em todos os feriados no país onde o trânsito mata mais que muitas guerras pelo mundo.

Todos os feriados são mais ou menos assim, mas no Carnaval tudo é mais excessivo, tudo é mais intenso. Nesse a morte se fantasia de todo tipo de tragédia para levar os seus.

E a ressaca pior é a que vem para quem fica, porque a volta para casa é mais difícil depois da última pá de terra.

Não gosto de ir a enterros, creio que ninguém gosta, mas o roteiro é sempre o mesmo. Todo mundo é parecido quando sente dor. Acima da língua dos anjos e da língua dos homens está essa feita mais pelos olhos que pela boca.

Essa foi talvez a primeira linguagem que Deus ensinou aos homens antes de os expulsar do Paraíso, já que pelos olhos se lê muita coisa, principalmente a dor.

Na volta do cemitério os ombros parecem carregar o mundo, o fardo pesado da falta do que se foi.

Acordar no outro dia é difícil, e essa ressaca não tem remédio feito por mãos de gente.

Somente o criador do tempo pode dar esse alívio, mesmo que em doses homeopáticas. Somente o tempo distrai da dor e faz a vida seguir seu curso. Ano que vem tem Carnaval mais uma vez, a vida segue seu curso e seus ciclos e o calendário não liga para os acidentes de percurso na nossa estrada.

Depois a falta fica como um ferrão delicado, volta e meia atiçando a dor

As ruas lotadas de pessoas em festa e os cemitérios lotados de pessoas em dor.

Diferentes histórias terminando sempre do mesmo jeito. São variações tão pequenas que ‘seu’ Zé Coveiro, há mais de 50 anos abrindo covas em Iguatu, confessa não ver muito.

A morte nos redime a todos.

Sangue, suor e cerveja, no país dos excessos, abaixo da linha do Equador, onde não existe pecado e os jovens, de corpo e de alma, andam pelas ruas exaltando a vida.

Triste encarar os dois lados da moeda, principalmente quando a roda do destino nos abala diretamente.

Mas na verdade, o que precisamos é reza na cabeça, pelos que se foram, mas principalmente pelos que ficam. Que o tempo, senhor da razão, abrandador de naturezas também possa abrandar a dor.

Tal hora isso passa.

Claro, estou sendo romântico. A gente sabe que são muitos fatores que fazem essa estatística, muitas histórias. Umas que poderiam ser evitadas, outras não.

Sou romântico porque se não fosse, certamente, já teria procurado uma porta para sair desse mundo sufocante.

Mas por hoje, é sexta e a ressaca dessas tristezas ainda não passou, vou me deitar e dormir.

Amanhã vai ser outro dia. Os passarinhos devem cantar como cantaram hoje.

E a vida que segue para os que ficam.

Jan Messias é radialista, fotógrafo e estudante de direito

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