A sensação de morar no beco

04/11/2023

Qual é a sensação de morar no beco? Inegavelmente eles fazem parte da infraestrutura da cidade. Compõem o emaranhado urbano e naturalmente vão se transformando numa espécie de gleba urbana, onde todos os moradores se conhecem, cada um com suas histórias, dramas sociais, e as carências dos serviços públicos inerentes aos seus anseios e necessidades.

Os bairros novos não podem exibir este pedaço charmoso da vida na urbe, porque em geral surgem ganhando nome, ponto de referência e os traços de engenharia e arquitetura modernos. Nesses aglomerados de imóveis metricamente divididos, seus mutuários têm acesso à coleta sistemática de lixo, serviços de internet, transporte na porta, e as entregas oriundas das lojas, restaurantes, farmácias, pizzarias e outros estabelecimentos comerciais.

Diferentemente de quem mora nos becos da vida, quando é preciso um desdobramento mais minucioso de seus ocupantes, para descartar, por exemplo, o lixo, já que os carros coletores, que são veículos largos e volumosos, não conseguem entrar lá, por uma razão de engenharia bem simples, os becos são estreitos e na maioria e só têm entrada. Neste caso os moradores têm que levar o lixo até a rua principal para que a coleta seja feita. Às vezes isso gera conflitos porque quem mora na via coletora, perto de entrada de beco, se incomoda quando o lixo dos vizinhos é depositado na calçada ou na rua. Olhar para a gente das vielas e torcer o nariz é um gesto natural, da relação antissocial entre os que são mais aquinhoados e os menos afortunados, mas protestar mesmo que em silêncio, com o descarte do lixo deles é mero equívoco, porque a calçada não pertence ao dono do imóvel; pertence ao pedestre, ao cadeirante, enfim, é um componente da rua e não da casa de alguém. Já é constrangedor o bastante quem mora no beco conviver com as limitações de ali não poder entrar carro, os entregadores de produtos (farmácias, lojas, restaurantes) precisarem de mais tempo para localizar a casa de onde partiu o pedido, porque os becos não têm nome de rua, só nome de ‘beco’, mas quem ali vive é contribuinte do bolo tributário, é eleitor e consumidor igualzinho aos demais ocupantes da cidade.

 

Origem

Pela sua natural construção os becos deixam uma curiosa indagação: como eles surgiram? Que tipo de engenharia foi aplicada ali? É bem verdade que, de algum modo, os becos nasceram por alguma razão. Foi basicamente no surgimento das cidades. Eles são compostos de pequenas ruelas com casas dos dois lados, ‘porta de frente para porta’, espremidos entre ruas mais alargadas, com seus imóveis separados por espaços mínimos de 2 ou 3 metros, por onde só circulam pedestres. Em geral, os moradores das casas, alguns são proprietários, mas a maioria é formada de inquilinos que pagam aluguel para morar.

Nas metrópoles brasileiras, hoje os becos são memórias vivas do passado histórico. São temas de pesquisas acadêmicas e até viraram atração turística. Em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, eles são estudados como tecido das primeiras aglomerações urbanas, na Era Colonial, por volta do século XVIII, todos com nomes. Beco da Façanha, Beco do Poço, Beco da Cadeia, Beco do Rosário. Em Tiradentes, cidade mineira de trezentos mil habitantes, foi criado um programa turístico visando a atrair visitantes, cuja melhor atração é um tour pelos becos da cidade.

Visão da engenharia

O engenheiro civil Francisco Chagas da Silva lança seu olhar técnico sobre os becos. Na visão dele, “O padrão construtivo das residências dos becos não é exclusivamente de construções de baixo nível. São retratos da condição do bairro ou região em que está localizado. Assim, temos residências de vários níveis, similares ao do entorno, normalmente construções antigas que retratam a época em que foram criadas, período em que não havia planejamento para criação de quadras e vias como vemos nos loteamentos atuais, normalmente se apresentam em quadras de grande extensão que foram sendo ocupadas aos poucos e sem planejamento de vias de acesso ao longo do século passado, necessitando a criação de vias estreitas por onde a população acessa as residências”.

Cocobó

Os becos ou vilas estão espalhados por todo o perímetro urbano da cidade. Em determinados bairros eles aparecem em maior número, em outros, menos. Mas onde estão reservam praticamente as mesmas características. No bairro Cocobó, a reportagem localizou a Travessa Lourival Correia Pinho, beco que nasce na rua de mesmo nome. Ali residem em torno de dez famílias. O local só tem entrada, não entra carro, pelo espaço pequeno entre as casas. Valéria do Nascimento Teles, 28, reside lá há quatro anos e já expressa seu sentimento pelo lugar. “Gosto de morar aqui”.

Beco das 7 facadas

Não tão distante da Lourival, num embrenhado da Rua José Pereira, com 7 de setembro e Dário Rabelo está o lendário Beco das 7 facadas. Hoje o local está abandonado, só há um morador, as demais casas estão fechadas. A história contada por moradores da área relata que uma mulher morta com sete golpes de faca, deu o famoso nome ao local. Joilton Santos, 34, é um jovem empresário serralheiro. Trabalha e mora próximo ao beco e afirmou que viveu sua infância e juventude naquele trecho e hoje se sente triste em se deparar com o cenário atual. “Meu sonho era ver isso aqui todo restaurado, todo revitalizado, acho que todos iriam gostar”, disse.

Centro

Nos bairros Brasília, Tabuleiro, Flores e parte do Centro é onde está a maior concentração de becos. Somente na Deocleciano Bezerra são quatro: Sales Teixeira, Travessa Deocleciano, Cícero Pires e Ademar Gonçalves. Entre as ruas Eduardo Lavor e Luiz Gonzaga de Mendonça está a travessa Eduardo Lavor. Uma viela estreita entre essas duas artérias, com pouco fluxo, trânsito e barulho, apesar de estar no Centro. Fernanda Maciel é moradora do local. Ela confessou que muitos conhecem ali como beco, no entanto não hesitou em afirmar que é agradável a morada.

Agente de saúde

Maria Geiza Gomes de Lima, agente de saúde, trabalha no atendimento às famílias dos bairros Tabuleiro, Vila Jardim, Planalto. Geiza afirmou que gosta muito de trabalhar nos becos. Segundo ela, o acesso às pessoas é mais fácil, por isso prefere ir aos becos, por ser melhor acolhida, até melhor do que em outras ruas, onde sequer as pessoas querem receber um profissional. “Lá tem muita gente carente que precisa mais do nosso trabalho. Acho melhor trabalhar com vilas, becos, vielas, do que com outras ruas”, frisou.

Visão imobiliária

Francinildo Lima, profissional do setor imobiliário, é bom conhecedor desse mercado e tem um olhar sazonal sobre o que na visão dele deveria melhorar, olhando pelo aspecto da valorização. “As ruas estreitas conhecidas culturalmente como becos precisam ao olhar urbano serem valorizadas a exemplo de cidades onde a colonização do nosso país foi iniciada. No olhar urbano imobiliário, a melhor forma de valorizar e preservar é transformar esses espaços com piso intertravado ou português, com iluminação central posteada transformando em uma espécie de passeio público sem acesso de veículos, uma vez que na sua grande maioria possuem extensão pequena e sem casas com garagem de carros”, lembrou.

13 de maio

Descendo pela 13 de maio vão surgir dois deles: a Vila Assis Vasconcelos (Vasco), que homenageia o saudoso e carismático radialista e o Beco dos Carneiros. Este começa na Júlio Cavalcante e saí na 13 de maio. Maria Aparecida dos Santos, 47, mora do Beco do Vasco desde que nasceu. A casa dela fica na esquina, com a lateral toda entrando beco a dentro.

Lucimi Carneiro, 53, é um fabricante de pré-moldados. Ele se autointitula como um dos moradores mais antigos do Beco dos Carneiros. Sua família Carneiro seria fundadora da vila. Ali também mora o casal Ana Lúcia, 59, e o esposo Dorgival Gonçalves de Araújo, 60. “Moramos aqui. Nossa casa é própria, não pagamos aluguel e para mim é o lugar mais tranquilo”, afirmou.

Quase de frente com o Beco dos Carneiros está o de Zefinha Machado. Ela é a dona do beco inteiro, uma aquisição feita há décadas. Esse entrelaçado de vielas está recheado de profissionais autônomos. Tem enrolador de cadeiras, sala de beleza em casa e até serigrafia. A Vila São Francisco é conhecida como Beco do bar do Paulo Uchôa. Um lugar com suas peculiaridades e charmes. Estreito, bem arborizado e sem saída. “Se entrar um carro aqui tem que voltar de ré”, lembrou um dos ilustres moradores, Raimundo Ricardo de Souza, montador de móveis.

Rua Júlio Cavalcante

A Rua Júlio Cavalcante também revela seus becos. Num deles, José Severo, uma das moradoras mais veteranas é dona Luíza Maria de Souza, 82. Ela criou seu próprio jardim no beco, com plantas medicinais e ornamentais. Sua vizinha mais próxima, Maria de Fátima, 66, é só orgulho por morar ali. “Estou aqui há quase 30 anos, gosto de morar, vizinhança boa, pessoas amigas, todos prontos para ajudar”, contou. Também na Júlio, em outro beco, Pe. Geraldo Vieira, tem morador veterano e novato. José Hélio, agricultor, disse que o beco é seu endereço há mais de 40 anos.

José Alves de Lima, agricultor aposentado, é um dos mais recém-chegados. “Estou morando aqui há uns quatro anos, pouco tempo, mas gosto muito daqui, principalmente pela tranquilidade que é”, lembrou. Dona Rosara Lemos, 69, é moradora veterana também, são mais de 40 anos transitando no mesmo endereço.

Rua dos Inocentes

Na Rua Manoel Alexandre (Rua dos Inocentes) tem pelo menos três becos, todos com saída, mas vão dar direto nas margens do rio Jaguaribe. Antônia Marques ‘Toinha’ é uma moradora inquieta e cheia de atitudes. Ela mora na Travessa Manoel Alexandre. Cria galinhas e conseguiu plantar árvores frutíferas (banana, mamão, coco, goiaba, seriguela), na descida do beco para as margens do rio. É lá onde ela consegue guardar seus materiais que ela junta (garrafa pet, metal, papel e vidros), para vender e resguardar o sustento de casa. “Moro aqui, vivo aqui, gosto muito, porque aqui, ninguém vem mexer com a gente e consigo fazer coisas que eu gosto, cuidar de planta, criar galinha e ter paz”, disse.

 

Visão da arquitetura

O arquiteto e urbanista Wilson Maia Lima Verde fez um passeio pela história e o contemporâneo, ao se debruçar sobre a função dos becos e suas nuances na composição da cidade. Quando Wilson nasceu, os becos já estavam formados. Hoje é o conceituado arquiteto e urbanista quem remonta este complexo urbano.

“Entra em Beco, sai em beco… A forma dos espaços urbanos é variável no tempo e no espaço. A morfologia de uma cidade influi em seu tráfego, equipamento urbanos, urbanizações, áreas residenciais, industriais, institucionais, etc. Esse desenvolvimento, normalmente acontece de duas maneiras: espontânea ou planejada. Entretanto de uma maneira ou de outra, a vida socioeconômica da comunidade, exerce substancialmente influência nessa estrutura urbana.

A história da cidade e do urbanismo são coisas diferentes, são resultados de processos de seleção cumulativa. Alternadamente, algo é conservado e reutilizado em novos contextos, algo é abandonado, destruído ou transformado. A exemplo podemos citar como fenômeno no traçado urbano a presença de ruas estreitas e curtas, às vezes sem saída e pouco apropriada para o trânsito de veículos, com tônica exclusivamente residencial. Como herança de nossa colonização, também sofremos influências na ocupação do solo urbano com características peculiares e de fácil identificação, como passeios e ruas estreitas, construções limítrofes as calçadas, edificações geminadas, notadamente em cidades interioranas, centenárias, que outrora se utilizava do transporte a tração animal, sendo seus percursos curtos, propiciando aos pedestres deslocamentos confortáveis.

Os becos surgem em áreas com menor valor imobiliário, porém, via de regra, nas proximidades de igrejas, instituições, escolas, comércios, indústrias, colégios, etc. Geralmente alocando famílias, partes da mão de obra produtiva local. Curiosamente, a toponímia empregue nos becos, caracteriza-se, por fazer alusão a datas, acontecimentos, artesãos que lá trabalhavam, referências geográficas, tipos populares e outros de gênese indefinida. Numa releitura contemporânea, temos o fenômeno dos condomínios fechados residenciais de casas, que inversamente a formação espontânea dos becos, constituem-se em células segregadoras na urbe.

Outrossim, conceitualmente, busca convívio harmônico, proximidade conveniente dos centros urbanos, lazer e segurança. Reconhecer os legados do passado, distingui-los de suas mudanças, transformações e sobretudo, das inovações, que frequentemente se apresentam sobre falsas roupagens, não é coisa simples e isenta de ambiguidade. Porém necessário se faz, tanto para a cidade como para o regionalismo, explicar o motivo da mudança ou manutenção de modelos originais”.

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