Quando era muito menino, costumava ouvir da mãe que o pai fora a São Paulo para trabalhar, juntar dinheiro e voltar com um balaio cheio de brinquedos para ele, uma casa decente para eles, uma moto do ano e até um carro para impressionar os vizinhos.
Era o sonho do êxodo nordestino de então. Largar o sertão e suas agruras e partir em busca de uma profissão na capital; uma que dessa renda, um lugar ao sol e um novo estatus em caso de regresso.
Os que voltaram, chegavam ao interior já convertidos em paulistanos, com o novo sotaque, roupas diferenciadas, cheios dos gracejos que aprenderam nas lajes e nas construções de concreto.
Carlos imaginava que com o pai seria igual. Mas o diabo é que ele não voltava.
Ele via muita gente bater à porta: credores, mulheres violentas que estapeavam sua mãe na presença do menino; homens estranhos que chegavam tarde da noite, exalando fumo e perfume barato. Trocavam de casa de quando em quando por faltar o dinheiro do aluguel.
Um dia ele foi bater à porta da mulher legítima de seu pai. Não só não foi atendido, como ouviu a voz da mulher respondendo as filhas que não era ninguém.
Começou a fazer um pé de meia para ir a São Paulo atrás do pai. Foi ser garçom. Com poucos meses na profissão, notou que a mulher verdadeira do pai tinha razão: ele não era ninguém. O garçom não tinha nome. Às vezes, se tanto, só vocativo: “ei, traz…” Mas ele não completara o ensino fundamental, e nem sabia o que era vocativo, nem o que eram as onomatopeias que substituam seu nome: “xiu!”, “fiu,fiu”. Mas sabia o que significavam os gestos com os dedos pedindo outra rodada. Sabia também o que era mosquear. Era o bastante.
Carlos aprendeu também que o garçom tem certa tendência a trabalhar para pagar o vício. Após o expediente, dividia as cachaças com os colegas. Passou a pegar do estabelecimento para ser descontado no salário. Era tão desajeitado que não recebia cantadas nem quando álcool já anuviava o juízo dos clientes.
Chegou a morar numa república de estudantes pobres. Eles também faziam bicos. Não viu diferença no estudo. Lembrava-se do pai. A mãe já o dava como morto. Era um morto sem lembranças. Mas um morto sem atestado de óbito tem suas vantagens. Quem sabe não se deu bem na vida? Quem sabe foi por isso que fugiu para a capital?! Quem sabe era feliz longe de um passado acompanhado?
Um homem que começa a vida, por mais precária que seja, não têm observadores e avaliadores, como ela se sentia sempre que ouvia as gargalhadas e os olhares de reprovação. Já nessa época flertava com um desfecho para sua vida.
Um dia apareceu o sinal que ele esperava. Um desses homicidas indiretos. Um tipo que sempre sai impune, pois nunca aperta o gatilho. Era um homem de seus quarenta e poucos anos, bem vestido e instruído. Carlos serviu-lhe. No início havia a arrogância do cliente com razão. Após alguns copos, surgiu o cínico. Lá pelas tantas da madrugada, fez a pergunta inédita:
– Garçom, como é teu nome?
– Carlos.
– É nome de rei, sabia? Vejo muitos por aí: Carlos, Magnus, Ricardos. Reis que me servem. Levantou o copo e riu.
Carlos não teve dúvidas. Se em outra vida foi rei e foi servido, nesta vida deveria morrer servindo.
– Como os reis morrem, quis saber.
– Como eles quiserem. Eles têm a gentileza da morte. Mesmo quando são apunhalados e traídos, a morte sempre sussurra sua chegada.
Carlos ficou contente. Recolheu os copos; pôs as mesas para dentro. Bebeu sua cachaça. Colocou sua motoca surrada na velocidade máxima e se atirou contra um poste.
Conseguiu ainda uma pequena nota num jornal de terceira da cidade.
“Homem de 20 anos, solteiro, profissão Garçom, morre em acidente de moto no beco das sete facadas”.
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