Platão fez à arte restrições conhecidas. Para ele, sendo mimese, imitação, a arte se contrapõe à verdade, trazendo ao plano da experiência estética reproduções fenomênicas, isto é, imitação da imitação do eterno paradigma das Ideias. A fim de tornar assimilável a complexa questão, realizou, dando voz a Sócrates, como personagem de um dos seus mais importantes diálogos, República, o Mito da Caverna, que considero a mais bela alegoria de que se tem notícia. Para dizer o que pensava ser a verdade, a Ideia, mentiu.
Mas foi Aristóteles quem defendeu o que é essencial, ainda hoje, para que não se cometam equívocos e se façam interpretações distorcidas daquilo que é a arte: a mais bela mentira, conforme as palavras do compositor francês Claude Debussy. Mesmo quando capaz de revelar a verdade, como defendeu Pablo Picasso.
Para Aristóteles, na contramão do que professara Platão, seu preceptor, é o fato de ser mimese que dá à arte a sua perfeita dimensão, muito além do que se entende por realidade, pois que a arte, muito mais que reproduzir servilmente a aparência das “coisas”, as recria, emprestando-lhes uma nova dimensão.
Sem meias-palavras, está na Arte Poética, ele diz: A poesia não só pode, como deve, separar-se da realidade e dar a público fatos e personagens não como são, mas como poderiam e deveriam ser. Foi além, sustentou que o artista pode introduzir no seu fazer o irracional e o impossível; e pode até mesmo mentir e lançar mão de paralogismos, raciocínios falaciosos, desde que os torne (o irracional e o impossível), “verossímeis”.
Desse modo, querer do artista, um escritor, por exemplo, que limite a sua criação a uma dada realidade, é um equívoco grosseiro, quase perverso, pois significa impedir que exercite a sua liberdade de criação, imaginando como as coisas poderiam ser. No cinema, no teatro, na literatura e em todas as demais linguagens estéticas, é a capacidade de invenção do artista que torna o objeto por ele criado – um poema, um romance, um filme etc. – algo maior que a pura realidade. A arte existe para que o homem não morra de tanta verdade, assim nos lembrava Nietzsche, em sua genialidade.
A dicotomia verdade/mentira, infelizmente, continua a despertar a curiosidade do público consumidor da obra de arte. No caso da literatura, a narrativa de ficção, sobretudo, são recorrentes as tolas questões: “É verdade ou invenção?”, “Isso aconteceu realmente?”, “Ficção ou realidade?”.
Se um romance, para ilustrar o que me interessa aqui, é narrado em primeira pessoa, então, os questionamentos são recorrentes, como se ao artista (independentemente do seu tamanho e do seu prestígio), não fosse dado por direito do ofício, mentir, apagar os traços de sua individualidade e ir ao outro, colocando-se em seu lugar, no milagre intraduzível de sua invenção: Não se pode atribuir ao autor aquilo que é próprio do narrador. Um romance é uma invenção e tudo nele deve ser visto à luz do artifício e da fantasia… nascidos da necessidade humana de criar irrealidades como se fossem a realidade elevada a sua máxima potência.
Em livro clássico sobre o assunto, Mikhail Bakhtin trabalha com duas categorias que ajudam a entender essa dicotomia em que estão colocados autor e narrador: O autor primário é o autor (a pessoa) que está fora da obra, aquele que a criou como objeto artístico. O autor secundário, num romance em primeira pessoa, é imanente à estrutura da obra e responsável por sua construção. É notável, como exemplo, o Brás Cubas, de Machado de Assis. Ou, não menos bem imaginado, o Paulo Honório, do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos.
Recentemente, publiquei pela Editora Sarau das Letras Quase Romance, em que a personagem Paulo escreve dentro do livro um outro livro. Reflexividade, livro dentro do livro, narração dentro da narração. Tudo mentira, embora calcado numa realidade que, não sendo minha, é do leitor, a quem pertence um livro sempre que dado a público pelo seu autor. O autor primário, diga-se em tempo.
Ambientado no Rio de Janeiro e tendo como fio condutor os acontecimentos sombrios dos anos de chumbo, traz de volta ao leitor um tempo que não pode ser esquecido, de tortura, do AI-5, dos militares mandando e desmandando em meio a dor e sangue. E a traição, não de Ana, sobre quem pesam as acusações do marido ciumento, mas dele mesmo em relação aos ideais de um país mais justo, mais humano e livre.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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