Adeus ao bom pastor

14/12/2019

Tinha eu cinco, seis anos, quando de sua chegada a Iguatu. Não sei se ainda vejo tudo aquilo com os olhos deslumbrados (e sem medida!) do menino que fui, mas o fato é que guardo a festa de acolhida ao bispo de Iguatu como algo tão grandioso, tão cheio de luz e graça, que nada se lhe pode comparar. Talvez a noite de Natal, a cada dezembro…

Recordo as pessoas nas ruas, a multidão que se formava rapidamente ao lado da catedral, as faixas, os cartazes e as bandeirolas multicoloridas a tremular em profusão, ininterruptamente – e a contagem regressiva que acompanhávamos, com um misto de emoção e saudável nervosismo, através dos alto-falantes espalhados por toda a extensão da Praça da Matriz.

Bem ao fim da tarde, pelas 17 horas, talvez, eis que o locutor anuncia a chegada da comitiva que acompanhava o “Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Dom José Mauro Ramalho de Alarcon e Santiago” – a chave simbólica da cidade já nas mãos!

E fomos, num piscar de olhos, cobertos por uma nuvem de fumaça que se seguiu ao ensurdecedor pipocar das bombas, ao voar sem direção de pombas e andorinhas, também elas contagiadas pelo espírito da grande festa de acolhida ao primeiro pastor da Diocese de Iguatu. Era início dos anos 1960.

Esta semana, aos 94 anos, pouco mais, pouco menos, eis que chegou a hora de sua partida.

Recebi com uma tristeza imensa a notícia, muito embora convencido de que, infelizmente, era acontecimento esperado, posto que lenta a sua agonia nesses últimos dias.

Como tantos e tantos, por certo em quantidade impensável, tive a alegria de conviver com Dom Mauro. Não cruzar com ele pelas ruas em mangas de camisa, andarilho que era o belo pastor; não quedar magnetizado, como ocorria a qualquer um, diante de seus sermões cheios de bondade, de sabedoria, de amor! Não apenas isso. Digo “conviver” no sentido que traz a etimologia da palavra: Viver com!

Sei que, para muita gente, esta revelação constituirá surpresa. Não importa!

É que Dom Mauro, entre as suas incontáveis qualidades pessoais, foi sempre um erudito atento, um investigador dos conflitos do homem, um observador da vida em sua dimensão mais grandiosa e profunda! Decorre dessa sua curiosidade intelectual, quero crer, o fato de que muitas e muitas vezes, aonde quer que cruzássemos, e não raro em sua Casa Paroquial, sentados em suas confortáveis cadeiras de balanço, ficarmos a trocar ideias, a procurar juntos, num exercício descontraído senão da pura Filosofia, mas do puro filosofar, o entendimento possível da condição humana, e do eterno viravoltear das coisas num mundo tão confuso e tão perdido, tão despossuído de Fé.

Certa vez, livro aberto nas mãos, apresentou-me Agostinho, o “Santo da Inteligência”… Falava com uma tranquilidade contagiante sobre temas diversos – conhecimento, sabedoria, conversão, Deus, Amor… Eu, pequeno, diminuto; ele, enorme, do alto de sua imensurável grandeza!

Houve um tempo, dobrado ao peso de golpes profundos na alma, desses que a vida nos dá aqui e além, que tive de recorrer a Dom Mauro não mais como a um amigo, a um interlocutor comum, pois me sentia como que necessitado das graças de um Santo… E encontrei esse Santo na pessoa do velho pastor que agora partiu! Mas o que é a morte, para quem soube viver a vida? A morte, disse o poeta, é a curva da estrada. Morrer é só não ser visto.

Não desçamos a detalhes, que o momento é outro e a vida seguiu e tudo passa sobre a face da terra, mesmo as dores que parecem não ter fim!

Impossível não recordar, porém, o que vinha daquela voz grave e aveludada, colocando-se, pausadamente, entre as extensões vocais do baixo e do tenor, em bom latim: “Feras, non culpes, quod mutari (ou vitari) non potes!” Suporta, sem te queixares, aquilo que não puderes mudar!

Tem o tamanho das montanhas a minha gratidão, meu bom José!

Num mundo tão carente dos grandes espíritos; numa hora tão delicada de nossas vidas; em meio à desesperança de um tempo marcado por tantas desigualdades e mais de mil outras contradições, e tanta injustiça, eis que perdemos esta referência moral, este homem bom e iluminado, esta figura sábia e generosa de quem jamais Iguatu haverá de esquecer!

Não resta dúvidas, para nos confortar, que descansará em paz, em companhia dos bons e dos justos!

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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