Afinal, o que é “saudade”?

19/03/2021

Jards Nobre (Doutor em Linguística)

 

Uma das ideias mais amplamente difundidas a respeito da língua portuguesa é a de que não existe, em nenhuma outra língua, uma tradução exata para a palavra “saudade”.

“Saudade” veio da palavra latina “solitate” (“solidão”), passando pelas formas arcaicas “soydade” e “suydade” (séc. XIII), provavelmente com influência, quanto à pronúncia, da palavra saúde.

Faz parte também do galego, língua da qual descende o português (ambas descendem do latim levado para a Península Ibérica) e se refere a uma “lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las” (Aurélio, p. 1899).

É um tanto precipitado dizer que, num universo de mais de 6.000 línguas, não há nenhuma que contenha um substantivo que equivalha perfeitamente à nossa palavra “saudade”. Por outro lado, há a tese de que não existem sinônimos perfeitos, nem no interior do léxico de uma mesma língua, nem em se considerando duas línguas diferentes. Isso tem a ver com a noção de “valor” discutida por Saussure: “O valor de qualquer termo que seja está determinado por aquilo que o rodeia” (CLG, p. 135), ou seja, um termo adquire um significado em relação a outro(s) com o(s) qual(is) pode ser confrontado. Se confrontarmos saudade com nostalgia, perceberemos que este termo tem um significado mais restrito (“saudade da pátria, sentida por quem está distante dela”); porém, por metáfora, pode ser usado como substituto de saudade, como fez Machado de Assis em “Histórias sem data” (p. 55): “Eu ainda estou na minha; acho que foi a nostalgia da lama.”

Se “saudade” não encontra equivalentes nas mais conhecidas línguas, há também termos nessas línguas, referindo-se a sentimentos semelhantes, que não encontram equivalentes em português. Vejamos:

O substantivo “longing”, do inglês, refere-se a um forte desejo, não muito apaixonado, mas sim melancólico (cf. Wiktionary – online). Em comparação com saudade, “longing” se refere a um desejo mais avassalador, seria uma saudade intensificada, que chega a doer, uma ânsia por reaver algo/alguém ausente ou do passado, ante a iminente possibilidade do reencontro. A nossa saudade nos é “suave” (como aponta o Aurélio) e, quase sempre, aponta para a impossibilidade do reencontro com o objeto de desejo, ou para a indefinição desse reencontro.

Em catalão, uma língua neolatina como a nossa, há o termo “enyorança”, que se refere a uma “pena ou sofrimento pela ausência, pela perda de alguma coisa ou de alguma pessoa” (cf. Diccionari de la Llengua Catalana). É como a nossa “saudade”, mas falta aí o desejo de reviver o passado, aquilo que nos faz até sorrir com as lembranças. É como se a “enyorança” fosse apenas o lado ruim da nossa “saudade”.

Em romeno, outra língua neolatina, há o substantivo dor, do latim “dolus” (f. alt. de “dolor” = dor), para o “desejo forte de ver ou de rever alguém ou algo querido, ou de retornar a uma ocupação favorita” (cf. Dicționarul explicativ al limbii române). Em “dor”, o aspecto físico do sentimento é mais saliente do que em saudade, que é mais “suave”.

Se traduzirmos “longing” ou dor por saudade, retiramos desses termos sua intensidade. Se o romeno traduzir “longing” por “dor”, perde a inquietação que aquele termo contém; além disso, em “longing” há uma certeza do reencontro, ausente em “dor”.

Penso que, se às vezes choramos de saudade, então ela não é apenas suave como dizem os dicionários, pode ser violenta como o “dor” romeno e como a “longing” inglesa. Penso, portanto, que o coração de cada povo, melhor do que suas línguas, é quem pode enfim saber que sentimento é esse.

Neste instante, certamente dois seres humanos, que falam línguas diferentes, em pontos distantes da Terra, devem estar padecendo do mesmo sentimento que nós cá chamamos de saudade e que eles lá chamam de outra cois

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