Há pouco tempo o visitei em Iguatu. Estava, já, muito combalido fisicamente, fato que se agravara desde a morte da companheira Teonila. Como o gentleman que sempre foi, no entanto, não mediu esforços para apertar-me a mão, ajeitando-se com sacrifício sobre a cama; o sorriso largo, como se a minha presença lhe devolvesse um pouco da alegria perdida, dos tempos inesquecíveis à sombra dos cajueiros do colégio Adahil Barreto, entre amigos e familiares.
Senti que seria esse o nosso último encontro, mas guardei, a custo, as lágrimas, para depois, a fim de que a minha tristeza não contagiasse o seu coração visivelmente cansado, morada de tanta generosidade, tantos sentimentos bons, tanto amor pela vida; a mesma vida que, agora, como que lhe apontava a porta da partida.
Saí dali tomado de uma emoção profunda, de tal forma que foi Miguel, o filho do meio, entre os três homens, quem me consolou, conduzindo-me, serenamente, até o carro, num silêncio que dizia tudo: Raimundo estava, mesmo, de malas prontas, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar, como no poema clássico se refere à morte que chega, Manuel Bandeira.
O certo é que, pelo quarto de hora que passei a seu lado, sentado à beirada da cama, ouvi de Raimundo Felipe quase as mesmas palavras sábias de sempre. Falou de Teonila, da vontade confessa de ir logo encontrá-la, que “o mundo, sem Teonila, deixara de fazer sentido”, é como me dizia. Altruísta, todavia, ainda rebuscou forças para comentar o país, o “governo sem rumo” que começava, a injustiça “sem nome” que se fizera a Lula, os filhos, noras, genros, os amigos…
A uma dada altura, surpreendeu-me, dedicando a Teonila os versos de Machado, a voz titubeante, os olhos encharcados: “Querida, ao pé do leito derradeiro / Em que descansas dessa longa vida / Aqui venho e virei, pobre querida / Trazer-te o coração do companheiro”.
Ao final do soneto, que recitou na íntegra, a mão trêmula ainda tentou disfarçar uma lágrima mais pesada que lhe correu pela face, mas a boca já não me disse nada. Eram os olhos de doutor Raimundo que me davam adeus.
Deixou-nos, há pouco, é verdade, mas fica a memória do homem de bem; do professor elegante; do amigo respeitoso e cordial; ficam as lições de um pacifista; fica, acima de tudo, o sem-número de obras importantes com que assinalou, a ouro, a sua passagem pela instituição educacional a que dedicou, quando menos, dois terços de sua vida luminosa e fértil.
Há homens, estou convencido, que, pela grandeza de alma e bondade de espírito, pela galhardia de suas ações, pelo exemplo que legam à posteridade, parecem ter nascido para nunca morrer – e haverão, mesmo, de permanecer vivos para sempre em nossos corações. Raimundo Felipe, seguramente, é um deles.
Deixo-lhe, como está em Drummond, o poeta mineiro, a minha “Gratidão, essa palavra-tudo”!
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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