Na volta da capela, uma mulher puxava seu filho pelo braço, num compasso de pernas que a criança não acompanhara. Na esquina em que sumiam a mãe desalmada e filho admoestado, um bêbado dormia profundamente. De tanto admirá-lo, esqueci do projeto de mãe visto anteriormente, desaparecido pela rua que dava para um conjunto nobre – lugar de gente pálida, reta e extremamente desinteressante, tal qual os assuntos econômicos, onde competiam para definir quem detinha mais bens e sobre quem era o mais bem-sucedido…
Volto ao bêbado. Este me realiza enquanto ser humano. Eu o conhecia, já fomos parceiros de copo, sem dúvida alguma! O pobre homem, hoje, sofre com as sequelas do mal que o acometera há dois anos. Mal talvez proveniente do fumo em excesso, ou do álcool feito, por anos, de café da manhã, almoço e janta.
Mas, como um bom parceiro de tabernas, eu sabia que o mal que afligiu aquela alma torturada era outro. A decadência é apenas efeito, a causa é mulher… ou, melhor dizendo, uma mulher. A mulher! O mal, velho e famigerado caso de amor não correspondido. O inexperiente e carente amigo não imaginaria o risco que corria quando se fez naquele universo nunca antes explorado.
Na época, assisti a tudo, mas, em meio a conselhos – nunca ouvidos – arranjei um inimigo. Sim, acabei por perder um amigo, cego pela paixão avassaladora. E hoje, vejo este mesmo amigo em cima de um papelão velho, num sono que o permite fugir da realidade plantada e colhida. Sei que ele não aceitaria um prato de comida, sei que não aceitaria sequer um bico de pão…
Aquelas mãos queimadas pelo sol erguiam-se somente para o álcool; suas unhas amareladas comportam nicotina de longas datas… Entretanto, a sua doença era o que menos lhe importunava. Enquanto penso, eis que ele abre os olhos miúdos, olha para os lados e derivou rumo ao bar onde eu assistia a vida como um filme: a capela da senhora e da criança, e a calçada da esquina do meu querido e rebelde amigo ébrio… Que ele venha, preciso abraça-lo e dizer-lhe que não importa o que aconteceu, mas o que podemos fazer com os resultados da desgraça que o abatera… Mas, antes disso, precisamos beber e brindar…
Para minha surpresa, ao chegar, ele sacou um papel amassado do bolso e, sem proferir palavra prévia alguma, disse somente ‘‘leia!’’ Era um pequeno poema, provavelmente escrito em alguma noite solitária, regada a álcool e insônia.
‘‘MENOSCABO
Avassalado nas primazias dos sentidos.
Devolvido sob a alcunha de desamor
Desencanto, desperdício…
Emerge, não suporta, transborda
Ecoa por entre as árvores
No sarau das bucólicas corujas à mostra.
Vagueia fumegando a torpe vida errante
Incontida e inacabada, ensejando o breu constante ”
Bebemos muito, amigo leitor, bebemos muito!
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