Ao fim de tudo

21/09/2019

“Estamos acompanhando a morte dos amigos e conhecidos”, diz um sujeito de rosto rechonchudo para um velho amigo. O outro, de bigode espesso, cabelo grisalho e magro, também sente o mesmo, mas dá de ombros. Ambos estão experimentando a decrepitude. Estão vendo partir aquelas que amaram.

Mas afinal, o que é envelhecer senão acompanhar o abate?

Não pensar na morte, não senti-la vez por outra “a espreitar meus ossos para roê-los”, tornaria minha visão de mundo mais rasa, pedestre. Não pensar na morte imbeciliza.

Mas também não a idealizo. A morte é sempre a Outra. A ilustre desconhecida. Ela é feito aquela mulher, diáfana, que nos chega no tempo errado; o copo de cerveja que cai em meio a uma conversa animada, gesticular. E há também mortes e mortes.

Às vezes vejo minhas fotos com pessoas que me foram vitais, quase imprescindíveis, e não reconheço nem a eles nem a mim. Tudo mudou. Hoje são estranhos. Pessoas pelas quais não sinto amor ou ódio. Apenas, ao vê-los, contemplo uma imagem trêmula, como num sonho. E se deixei para lá qualquer mágoa que houvesse, qualquer lembrança amarga, foi menos por altivez que por perspectiva. Todos eles irão morrer, assim como eu. Tudo se tornará irrelevante quando se fechar o paletó de madeira. Tudo será esquecido, renegado ao nada.  Então deixo que os mortos enterrem seus próprios mortos. A única coisa a se fazer é concentrar-se nas coisas imperecíveis.

As atividades do espírito, a solidariedade aos estranhos, o amor ao próximo, contribuir com a vida de alguém; e o amor à arte, à escrita, que são as coisas que permanecem. Imaginar vidas possíveis ou, como me ensinou alguém, “imaginar sua vida como um romance e decidir qual personagem você quer ser: alguém passivo às circunstâncias e ao medo da decadência, ou alguém que age e, em tempo, faz aquilo que só você pode fazer”.

Encontrar algo que situe nosso ser em outro lugar que não as banalidades do mundo contemporâneo. Quando se situa o Ser para além do verme, a decadência passa a ser até um divertimento.

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor. 

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