AS VOZES DO VERSO – T. S. ELIOT

30/11/2024

Tal como uma belíssima mulher em meio a uma multidão, grandes versos se destacam, solitários e luminosos, quais sóis de extrema beleza, nos constelados céus dos grandes poemas.

Assim como o incisivo olhar do esteta persegue a feminina beleza onde ela estiver, o arguto mirar do crítico deve rastrear tais versos magistrais. Le tour de force! A joia das joias da inspiração do bardo.

Começaremos nossa série com um verso do poeta de língua inglesa T. S. Eliot (1888-1965). Trata-se de um verso sem métrica, inserido em um poema de versos brancos. Feitio algo modernista, mas felizmente de clássica índole. O poema intitula-se Rhapsody of a Windy Night. Eis o verso, o décimo primeiro do poema: Midnigth shakes the memory.

A tradução, literal e literariamente, é a mesma: “A meia-noite sacode a memória”.  São apenas quatro vocábulos. O sujeito, substantivo composto midnight, o verbo transitivo direto to shake e o objeto direto formado pelo artigo the (adjunto adnominal) e o núcleo memory.

A magna vis, a grande força e expressividade deste verso está, é notório, na consciente escolha dos étimos. Eliot, egresso do Simbolismo, teve também indubitável índole clássica. Artífice do fazer poético, escolheu com rara felicidade os vocábulos. O substantivo midnigth, de óbvio valor temporal, sofre personificação, intensificando-se semanticamente. Tal efeito prosopopeico dá-se pela ação verbal. To shake é sacudir, agitar, mover com força. A última palavra, memory, é o grande repositório de imagens poéticas. Abre-se, substantivo abstrato que é, para um manancial de possíveis evocações pessoais, simbólicas e filosóficas.

A imprevista associação de étimos abstratos com concretos lança-nos em um sugestivo cenário filosófico. “A meia-noite sacode a memória”. É claramente possível imaginar um personagem, e até nos inserirmos na cena, em uma longa noite de insônia a evocar lembranças cruciais, gratas e ou dolorosas.

As muitas intertextualidades, ecos despertados pela imagem poética, surgem naturalmente. Les Nuits do ultrarromântico Musset, a Turris Eburnea dos nefelibatas, The Raven do genial Poe e tantas outras.

Um belo verso é um dia feliz. Pássaro memorável que pousa em um galho frágil para logo voar…

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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