Astolfo

22/06/2024

‘‘Dessa vez, quase fui atropelado’’, pensou Astolfo enquanto descia, agoniado, o muro rumo a sua casa. Ele sabia que o único lugar onde estaria seguro seria naquela imensidão de louças e pedras frias que, paradoxalmente, o aquecia nas gélidas noites invernais.

Entretanto, ele sentia, de quando em quando, saudade do tal calor humano – razão pela qual arriscava-se ao sair do seu seguro reduto. A solidão condicionada faz com que nos arrisquemos no mundo externo e seus perigos. E Astolfo bem o sabia. Perdera amigos e família durante sua trajetória de vida, ainda que não fosse velho propriamente dito: estava na meia-idade.

Durante sua ausência, um morador novo havia chegado, foi o que o felino percebeu ao aproximar-se da nova casa do novato. A cerâmica portuguesa, de cor maple, ornava todo o suntuoso mausoléu. O que sugeria ser de ‘‘alguém importante’’ que, doravante, perderá, a cada dia, a sua expressão no mundo. Se o gato soubesse ler, saberia que o finado falecera aos 49 anos.

Astolfo olhava fixamente para a foto do recém-chegado. Na imagem, o sujeito estava sorrindo e com um copo de cerveja em uma das mãos – incomum para uma lápide. ‘‘Nem de longe ele imaginaria, no dia em que esta foto fora tirada, que hoje ele estaria aqui’’, pensou o gato. Por já ter convivido com humanos, ele conhecia certas convenções sociais e suas alegrias festivas, como denunciava a que ele vira na fotografia do agora finado.

O bichano, a julgar pelas idas cada vez menos frequentes dos familiares aos seus mortos, presumia que este, que ali jazia, seria apenas mais um que cairia no profundo mar do esquecimento. E estava certo. As pessoas tem seus afazeres. O amor esfria com a ausência, o amor morre junto ao perecimento do ser, junto à face da pura inexistência física.

A sua dona, que há oito anos se fazia ali, sem visitas (exceto no dia de finados), também fora esquecida pelos seus; menos por Astolfo, que resolveu fazer do cemitério a sua morada. Ele fora esquecido junto com a defunta, é bem verdade. Um ser vivente e uma morta partilham, ali, entre os sepulcros, do dissabor do mesmo menoscabo.

E o gato passeia em busca de qualquer caça, por entre jazigos novos e velhos, por entre arvores podres e cercados quebrados, na ânsia de saciar a sua fome, tentando fugir da morte, tentando não ser mais um inquilino daquela morada eterna. Esquecido ele já foi, mas morto, não.

Próximo a um túmulo, em letras garrafais, podia-se ler o seguinte epitáfio: ‘‘Eu tive pressa a minha vida inteira, e agora nada mais importa.’’ Astolfo, que não sabia ler, comia o seu raquítico rato em cima desse túmulo abandonado, como os demais.

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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