Bacia das almas

02/10/2021

José Fontes de Vasconcelos, o rei da vaquejada, como era conhecido, viu toda a sua fortuna ruir feito alguém que assiste a um golpe de Estado. Do dia para a noite, foi-se embora todo o respeito que tinha perante os comerciantes, os empresários do ramo pecuário, varejistas, as amantes e, sobretudo, os credores.

Ele, que outrora passeava na cidade com sua Hilux imponente, com suas botas brilhantes, seus quase 1,90 de altura, balofo, alvo e de cabelos negros em forma de elmo romano, já sentia a calvície crescer, o corpo definhar e as dívidas avolumarem-se.

Agora rondava a cidade numa bizz antiga, surrada, cuja existência ele desconhecia antes daqueles dias. Fora amante das mulheres solteiras mais bonitas da cidade – e das casadas mais discretas, muitas delas mulheres de sócios seus. Tivera filhos e filhas que se sobressaíam em beleza, carisma e comportamento civilizado.

Agora achava-se numa situação tal que teria de vender até os presentes caros que dera aos filhos como prêmio por sua ausência. Primeiro foi a frota de carros; depois as dezenas de casas que possuía, a maioria destinadas aos credores. É, a ruína é uma traça voraz.

Depois foi a vez das chácaras; em seguida, dos pedaços de terra e do gado. Assim os móveis caros, as coleções de livros que herdeira do pai, as joias da mulher. Ia e vinha, levantava inventários, tentava fazer empréstimos com os amigos.

Enquanto fazia a ronda no comércio, tentava, com muita dificuldade devido ao seu tamanho, manter-se ereto sobre a pequena motocicleta.

Não queria que ninguém o visse curvado. Mantinha um sorriso que dizia assim: “Não se preocupem, meus amigos, darei a volta por cima. Vou achar um jeito. Sempre achei”.

Ignorava, tal qual grande parte dos homens de posse, o ódio secreto, mudo, que a maioria sentia em relação a ele. Alguns dizem que é na falência que um homem conhece seus verdadeiros amigos. Já há quem diga que é nela que ele descobre que não havia amigos.

“Não tenho tempo para ser pobre. Esse tempo já passou”.

A sua sorte, por assim dizer, é que todo esse tremor não abalou o carinho dos filhos por ele. A prole chorava, mas resistia. Tinham um amor e, mais que isso, uma confiança cega no pai. Os pequenos aguentavam a gozação dos coleguinhas na escola; as moças e moços, a indiferença dos antigos pretendentes. A mulher, já beirando os cinquenta, não via outra saída a não ser ficar. Há muito não havia amor entre eles, mas ela devia ao marido os bons anos de viagens, almoços caros, pérolas, numa palavra: compensações.

Mas houve um dia, e tudo que disse acima foi para introduzir o leitor a este fato, que uma rachadura imensa cindiu a casa.

Um dos credores, após ameaças, xingamentos em público e dedo na cara, não vendo mais como receber nada de Fontes, quis o cachorro da família. Era de raça e xodó dos filhos, da mulher e da governanta da casa – a única que continuou trabalhando sem remuneração.

Era um cão labrador retriever caramelo. De fato, dizem que os cães veem coisas. No dia em que o credor ficou de pegar a dívida, o cão não comeu, não brincou, não quis pular no colo do caçula da família.

Passou a manhã acabrunhado. Fontes, que não era sentimental, ficou de coração partido ao ver a sorte do animal e o estado de ânimo dos filhos. O cachorro o fitava, com os olhos baixos, de bruços no chão. Desde a falência, foi a primeira vez que chorou copiosamente. Cerrava os punhos, andava pela imensa casa, a única que lhe sobrou, tentando pensar em algo.  Fumava um cigarro atrás do outro.

Quando o credor chegou, houve grande alvoroço. A mulher, aos gritos, suplicava para que o homem desse mais um mês para saldar a dívida. O chororô dos meninos invadiu a rua, o bairro, e reverberou na cidade.

Por um momento, o credor pensou em perdoar, mas lembrou que prometera aos filhos “o cachorro mais bonito da cidade”. O cão, muito dócil, zangou-se e não quis entrar na coleira. Rosnou, debateu-se, quis morder. Com muito esforço, foi posto na caminhonete preso a um cambão de corda. Fontes lembrou-se que era mais ou menos assim que se fazia com o gado antes da vaquejada.

Fontes quis apelar, mas teve um orgulho. Um súbito e inexplicável senso de que iria recuperar tudo. Aquele sentimento que acomete os doentes que não aceitam o fim iminente. Que olham para o padre com o mesmo olhar que Fontes olhava o credor. O olhar que diz que tudo ali é desnecessário, que a vida ainda não acabou e que ninguém está realmente preparado para desistir.

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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