Na capa, sob o título do livro, está anunciado: “Ficção”. Nada mais enganoso, uma vez que o recém-lançado “Bambino a Roma” (Companhia Das Letras, 2004), de Chico Buarque de Hollanda, é, antes de qualquer outra coisa, um livro de memórias, e extremamente bem construído do ponto de vista narrativo.
Li-o em poucas horas, totalmente submetido à leveza do estilo e à carpintaria de linguagem irretocável. Mas, por que afirmo tratar-se de um livro de memórias (nunca uma autobiografia), o leitor haverá de querer saber. Tentarei fazê-lo, nos limites de uma coluna de jornal e sem a pretensão de emprestar ao texto ares acadêmicos.
Desde o século XIX,* quando o vocábulo foi utilizado para definir um gênero literário, sabe-se que “memórias” ou “autobiografia” é todo e qualquer texto que tem como figura central o próprio autor. Há, no entanto, uma nítida diferença entre os dois tipos de escrita, ainda que muitas vezes confundidas mesmo em trabalhos de cunho acadêmico ou em verbetes de dicionário.
Enquanto a autobiografia tende a estar presa a fatos mais biográficos, sendo por isso mesmo mais objetiva e isenta de subjetivações, pretensamente completa no registro do que diz respeito à vida do narrador, as memórias representam um tipo de extravasamento do “eu”, não raro edulcorado pelo estado poético que toma conta do escritor durante o resgate memorialístico de acontecimentos passados.
Assim, não se pode querer das memórias o mesmo rigor historiográfico, a mesma precisão no relato dos fatos vividos pelo autor, ainda que tal isenção jamais seja obtida por completo, quer por esquecimento, às vezes intencional, quer por inevitável tendência a se aumentar ou minimizar passagens da vida do autor. Parece indiscutível, no entanto, que as memórias se prestam mais adequadamente para as abstrações emotivas, para as incursões conscientes no terreno da poesia e do ornamento de linguagem.
As memórias “conversam” intimamente com a literatura enquanto arte da palavra, a autobiografia nem sempre. As memórias tendem a ser literatura, quase invariavelmente, a autobiografia não, ainda que o texto venha a merecer um tratamento de linguagem que resulte em estilo agradável e sedutor. Isso ainda não será arte literária.
As memórias, pois, a exemplo do que se vê no livro de Chico Buarque de Hollanda, “Bambino a Roma”, permitem ao autor experiências narrativas mais ousadas, permeadas de obliteramentos e uso motivado de procedimentos pictóricos na construção do texto, o que, fatalmente, confere às recordações um perfume romanesco.
Esta, quero crer, a razão da palavra “ficção” aparecer na perigrafia da obra recém-lançada, como a advertir o leitor de que, embora plasmados na vida do autor, a narrativa e o estilo apresentam deformações intencionais, acréscimos, omissões, ajustes e edulcorações que visam a tornar o texto, antes de qualquer outra coisa, um objeto estético, destinado ao desfrute dos amantes da literatura.
Há, assim, no belo “Bambino a Roma”, passagens e passagens que não se pode dizer factuais, mas factíveis, como no capítulo em que o narrador relata os abusos sexuais a que foi submetido por um professor de nome Welsh: “Só acho uma lástima que, a essa altura, mister Welsh com certeza terá morrido, perdendo a chance de ler seu nome no livro de um autor brasileiro em cuja bunda lisa de menino ele gostava de passar a mão”.
Se real ou fictício o fato narrado, em tom descontraído, diga-se em tempo, como a superar pelo efeito catártico o trauma advindo de tal experiência, na perspectiva do leitor isso pouco importará. Ficção ou realidade, o que sobressai é a forma como o escritor constrói a narrativa, como elabora o enunciado a partir do manuseio competente da linguagem, como, no plano da expressão, soube fazer de suas memórias uma obra de arte.
Ficção a partir da memória, como afirma o editor Luiz Schwarcz, ou memórias com requintes de alta literatura? Fico com a segunda alternativa: “Bambino a Roma”, de Chico Buarque de Hollanda, é demonstração definitiva de que o maior compositor brasileiro é, também, um dos nossos maiores escritores da atualidade.
*O gênero, sem o rigor de classificação a que me refiro, terá surgido muito antes, supostamente durante os primeiros anos do Cristianismo. Nessa perspectiva, “Confissões”, de Santo Agostinho, escrito no ano 400, será um exemplo clássico de Autobiografia.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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